O BISCOITO MOLHADO
Edição 5331 SX
Data: 29 de setembro de 2017
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANO: XXXIV
CONFERINDO AS FICHAS
Nas rádios MEC e Roquete Pinto produzi durante um bom tempo
programas voltados para a ópera, grandes cantores e teatro musicado. Com uma
lábia irresistível o saudoso Artur da Távola, que tinha argumentos para vender
aparelhos de ar condicionado no Polo Sul, me convenceu de que eu era um
"radialista nato".
Não sou. Radialista nato é, por exemplo, o Nelson Tolipan,
que há trinta anos entra no estúdio da MEC, de mãos abanando, para apresentar
espetaculares programas de jazz. O mesmo fazia Hugo Paim, com seu delicioso
programa das noites de domingo, em que imperava o tango.
Não sendo esse "ás do volante" definido pelo
Artur, devo dizer que meus programas davam um trabalho dos diabos. Muita
pesquisa, confecção de montanhas de fichas, preparação de verdadeiros
"scripts' que eu levava numa pastinha para cumprir meus compromissos na
MEC e na Roquete.
Longe de minhas obrigações radiofônicas sou, hoje, o administrador
de um formidável arquivo de informações musicais. Que são úteis quando
assumo minha mesinha na redação do "Biscoito Molhado". Resgatar esses
escritos me dá prazer. Renovar contato com a obra dos grandes gênios
confirma certeza irremovível, que alcança dimensão religiosa: a grande música é
prova irrefutável da existência de Deus.
Remexo meus arquivos e encontro anotações que podem ser do
interesse dos nossos leitores. Pareceu-me boa ideia divulgá-las através das
crônicas do "Biscoito". Cartas para a redação!
Vamos começar com o primeiro grande sucesso de Giuseppe
Verdi. Naquela noite de 9 de março de 1842 os apreciadores da arte lírica
acorreram ao Teatro Scala de Milão para assistir à última ópera da temporada.
Não havia grande expectativa em relação a esse trabalho. A ópera sequer havia
sido anunciada no "cartellone", um calendário de espetáculos que o
teatro divulgava antes do início de suas temporadas.
Esta ópera era "Nabucodonosor", escrita para o
Teatro Scala por um jovem compositor que ali apresentara suas duas primeiras
obras: "Oberto, Comte di San Bonifacio", que estreara com algum
sucesso em 1839, e "Un Giorno di Regno", ópera bufa de 1840, um
grande fracasso, que Verdi se viu obrigado a concluir em circunstâncias
dramáticas, depois de perder sua mulher, Margherita Barezzi, e os dois filhos
do casal, vitimados por uma epidemia que naquele ano se espalhara por boa parte
da Itália.
Para surpresa geral, "Nabucodonosor",
posteriormente conhecida como "Nabucco", foi o primeiro grande
sucesso de Giuseppe Verdi, a ópera que o consagrou como um dos grandes compositores
da Itália, identificado publicamente com as aspirações políticas de seu
país.
O tema da ópera é o exílio do povo judeu na Babilônia. Uma
comparação entre esse contexto e o momento político que a Itália então
atravessava, aspirando à unidade de suas províncias e à libertação do domínio
austríaco, tornou-se inevitável. O célebre coro "Va pensiero" causou verdadeira
comoção no teatro, assumindo, desde então, status de autêntico hino nacional. O
fenômeno se repetiria mais de cem anos depois, quando o Teatro Scala foi
reaberto com "Nabucco", depois da segunda grande guerra. Uma plateia
maltratada, empobrecida e, em muitos casos enlutada, voltou a cantar a plenos
pulmões o "Va pensiero", com acompanhamento de lágrimas.
Dou mais uma remexida nos meus escritos e o sorteio, muito
honesto, devo enfatizar, aponta para o que andei comentando sobre "My Fair
Lady".
Difícil imaginar que essa extraordinária produção de Alan
Jay Lerner e Frederick Lowe tenha estreado na metade do século passado! Mas é
verdade. Essa première aconteceu no dia 15 de março de 1956, no Mark
Hellinger Theater de Nova Iorque. Dois anos depois a peça chegaria a Londres e
ganharia versões no mundo todo, do japonês ao hebraico. No Brasil foi
interpretada pelos extraordinários Bibi Ferreira, Paulo Autran e Jayme Costa. A
brilhante versão cinematográfica contou com os talentos de Audrey Hepburn
e Rex Harrison.
Alan Jay Lerner, o famoso libretista de "My Fair
Lady", fazia parte de um seleto grupo de compositores e letristas que
propiciaram a fase áurea dos musicais da Broadway. Ele estava em excelente companhia:
Arthur Schwartz, Howard Dietz, Vincent Youmans, Richard Rodgers, Oscar
Hammerstein II, Dorothy Fields, Jerome Kern e Cole Porter. Tinham em comum uma
sólida formação universitária, hábitos aristocráticos e refinado gosto
literário.
Lerner nasceu em berço de ouro, em 31 de agosto de 1918. Seu
pai, Joseph, era proprietário de uma grande cadeia de roupas femininas. Ele
estudou em Hampshire, na Inglaterra, e em Choate, no estado de
Connecticut, onde editava o jornal da escola em parceria com um amigo também
privilegiado chamado John Fitzgerald Kennedy, que posteriormente seria seu
colega na Universidade de Harvard. E Presidente dos Estados Unidos.
A inspiração e a formação cultural abrangente de Alan Jay
Lerner estão presentes em todos os detalhes do extraordinário musical "My
Fair Lady", que ele produziu em dupla com o também genial compositor
Frederick Lowe. Este, como veremos, teve uma trajetória completamente
diferente.
Ele nasceu em Berlim, no dia 10 de junho de 1901, filho de
pais austríacos. Seu pai, Edmond Lowe, era um músico famoso, que excursionava
com frequência à América do Norte, do Sul e também por toda a Europa. Frederick
cursou o Conservatório de Berlim, sendo contemporâneo do célebre pianista
Claudio Arrau. Tanto ele quanto Arrau ganharam a cobiçada medalha Holander,
conferida aos melhores alunos do Conservatório.
Em 1925, Edmond recebeu um convite para se apresentar em Nova
Iorque. Frederick decidiu acompanhá-lo nessa viagem. Mas quando chegou nos
Estados Unidos, separou-se do pai. Disse-lhe que ia fazer sucesso na
Broadway. Cedo descobriu que essa não era uma missão das mais fáceis. Fez de
tudo para sobreviver na grande cidade. Chegou quase a passar fome e muitas
vezes dormiu no Central Park. Aos poucos conseguiu ganhar dinheiro tocando
em alguns modestos clubes noturnos e acompanhando ao piano a projeção de filmes
mudos. Num dos cinemas em que se apresentava era costume dar início à
sessão com a execução do hino nacional norte-americano. Frederick Lowe não
conhecia o hino e decidiu por sua conta executar um outro de sua autoria.
Donos do cinema e plateia ficaram furiosos.
Com o tempo, sua vida começa a melhorar. Ele passa a
frequentar o "The Lambs Club", uma casa noturna onde se reuniam
artistas de teatro, estrelas do cinema, produtores e diretores. Uma noite, se
encheu de coragem e abordou o famoso Alan Jay Lerner. Disse a ele: "Eu
penso que você escreve letras de canções". Lerner respondeu no mesmo
tom: "Bem, eu entendo que você compõe música".
Ali começava uma parceria de enorme sucesso. Modesta de
início, com a apresentação de "Great Lady" e "The day before
spring". O primeiro êxito verdadeiro da dupla foi "Brigadoon",
seguido de "Paint your Wagon". "My Fair Lady" foi sua
consagração, em 1956.
Nova mexida nas fichas e surge o assunto tango. Tema
que, normalmente, dá margem a algumas confusões. Senão vejamos: Carlos Gardel,
o maior intérprete do tango, nasceu em Toulouse, na França, em 1890. Alfredo Le
Pera, o grande letrista do tango, nasceu em São Paulo, no Brasil, em 1900.
Essas circunstâncias, ao que tudo indica, não afetam o ânimo
de nossos "hermanos' platenses. Como sabemos, é quase impossível encontrar
um argentino que padeça de complexo de inferioridade.
"La Cumparsita", tango famoso, o mais gravado em
todo o mundo, também tem lá os seus problemas. Deveria ser motivo de imenso
orgulho para nossos irmãos argentinos. Mas não é bem assim. Para começar, o
autor de "La Cumparsita" é uruguaio. E a música, pasmem, não foi composta
como tango, mas sim como uma marcha para o carnaval. A história dessa música é
incrivelmente conturbada. Vamos resumi-la: o estudante de arquitetura Gerardo
Matos Rodriguez compôs "La Cumparsita" em data incerta, fins de
1915 ou início de 1916, para participar de um concurso de carnaval
promovido pela Federação de Estudantes do Uruguai. Não se tratava de um
tango, mas sim de uma marcha, interpretada em cadência quase militar.
Outra polêmica diz respeito à orquestra que teria gravado
pela primeira vez "La Cumparsita". Esta é uma discussão
infindável, envolvendo os conjuntos de Alonso Minotto, Roberto Firpo e Juan
Maglio. Consta, inclusive, que os discos da primeira gravação teriam sido
prensados em Porto Alegre.
A letra do tango famoso também deu muita confusão.
Originalmente, “La Cumparsita” não tinha letra. Em 1924
dois compositores argentinos, Pascual Contursi e Enrique Pedro Maroni,
produziram versos para a música, rebatizando-a com o título "Si
supieras". Começava aí uma pendência judicial que viria durar um quarto
de século, tendo sido dirimida apenas em 1948. O certo é que essa versão,
digamos assim, "pirata", foi a que fez imenso sucesso na voz de
Carlos Gardel, que a gravou em Buenos Aires em 1924 e, quatro anos mais
tarde, em Barcelona. Gerardo Matos Rodriguez chegou a produzir seus próprios
versos para o tango e esta foi a versão gravada pelo célebre tenor Titto
Schipa, em 1930. Mas os versos de Matos Rodriguez caíram no esquecimento.
"La Cumparsita" chegou ao cinema em 1947, num filme dirigido por
Antonio Momplet, com Hugo del Carril no papel principal.
Finalmente, uma última confusão envolvendo "La
Cumparsita". Nas olimpíadas de Sidney, no ano de 2000, a delegação
argentina desfilou na cerimônia de abertura ao som do tango famoso. O governo
uruguaio imediatamente protestou, oficialmente.
Acabei de ler Arthur Dapieve em Uma Ópera Carioca no O Globo e estava justamente pensando o porquê dos nossos grandes espetáculos de Ópera não terem sido filmados, incluindo os bastidores, onde os registros dos ensaios costumam ser deliciosos e a sua narrativa mostra a grande responsabilidade de se construir um registro idôneo, confiável de se tratar a História.
ResponderExcluirAcabei de assistir a um documentário sobre Portugal e Brasil feita sobre consultas a registros verdadeiros de historiadores honestos e não politicagem capitalista como ocorre em nossa mídia que tenta de toda a forma desconstruir nossos valores, nossa língua, nossa identidade, nossa unidade enquanto nação.
Tenho visto Paulo Fortes no You Tube, Majestoso, cantando Bossa Nova e Música Popular Brasileira.
Louvo sua preocupação em manter registros, ater-se a eles. A palavra passa, o registro permanece.
P A R A B É N S!
Em Tempo:
- Jamais deixaria de dar razão a Artur da Távola.
Realmente é uma pena a ausência desses registros. O que meu pai deixou gravado é lamentavelmente pouco diante da carreira que ele fez. Um energúmeno que dirigiu a Radio MEC nos anos 60 jogou no lixo, repito, jogou no lixo uma montanha de gravações de ópera realizadas na época áurea do Teatro Municipal. É o que temos...
ResponderExcluirTenho mania de documentar o que julgo importante. Meus programas na MEC e na Roquete, como mencionei na crônica, resultaram de muita pesquisa e "escrivinhação". No total, nove cadernos com 200 páginas cada. O que fazer com eles? Crônicas do "Biscoito" podem ser um destino digno para esse esforço que empreendi.
Tenho muito tentado não sofrer pelo meu Rio de Janeiro.
ResponderExcluirO que podemos esperar se o próprio Arquivo Nacional corre o risco de fechar por falta de recurso financeiro? É realmente desesperador para a nossa geração aceitar o atual sistema de coisas que se apresenta cada vez mais trágico. Pior, ainda, é não vislumbrar qualquer mudança para melhor.
Energúmenos crescem em número assustador.