O BISCOITO MOLHADO
Edição 5330 FM
Data: 22 de setembro de 2017
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANO XXXIV
Cinco horas da manhã o galo começa a
cantar, sem que ninguém peça, à hora mesma em que muita gente começa a dormir
(inclusive eu), embalado pela voz desse
pavaroti penoso, canto irritante que se prolonga pelo resto do dia,
intermitentemente, sem que haja alguém que lhe compreenda o desespero – a
necessidade de ter uma franguinha solta pela vizinhança. É uma ajudazinha de
nada que possa atender às necessidades prementes que a vida lhe permite
usufruir, como qualquer mortal,
seja coberto de couro, de escamas,
de pele ou de penas - desde que não sejam de urubus ou gaviões, mas de
pássaros, pelo lirismo e o encanto
do canto. É um canto choroso, lamento desesperado de quem está em solidão de
fim de vida, fim de tudo. O infeliz cantante surgiu de repente numa
área interna de um dos edifícios de movimentado bairro cosmopolita, que é Copacabana, por onde
desfilam milhares de visitantes extasiados. Um verdadeiro encanto, de dia ou á
noite, quando todos os gatos são pardos, quando os cantares são outros, embora
os fins sejam os mesmos.
O canto
do desespero faz-me lembrar dos meus tempos de ainda sequer ser adolescente,
que não tinha noção dos caminhos a percorrer, levava um viver simples, quando
nada importava, a não ser a vida. Os sonhos não eram sonhados. Não criava
ilusões, meu mundo era o presente, vivido em modesta casa, de quintal pequeno,
com uma área destinada a um feudo dominado por exuberante senhor, dono de pouco
mais de meia dúzia de galinhas, destinadas a suprir ovos para alguns omeletes e
bolos para os humanos e, o melhor, para o deleite do tipo galante e autoritário galo. O modesto
galinheiro era posse do grã-senhor que começava sua faina antes do nascer do
Sol, dividindo-se entre as damas galinhas do seu mundo, cada uma que esperasse
a sua vez.
Pelo
prazer que lhe era proporcionado pela natureza, seu canto era alegre, uma ode à
vida. Cada dama penosa que aguardasse a sua vez, e os de casa que esperassem o
resultado da engalanada folia, um adjutório às refeições diárias
pagas em milho pelos favorecidos, agradecidos.
Ao ouvir o novo canto, vejo-me de volta
aos idos tempos nordestinos, sem dar importância ao vizinho triste. Não me
lembro se o galo de antanho me irritava com seu canto festivo, isso agora não
importa. Hoje, sofrido pelo peso dos anos transcorridos, volto ao tempo que se
foi, pedaço da minha vida, revivido agora pelo canto do pobre galo instalado
entre quatro paredes de cimento, sem uma mísera franga para saciar-lhe os
desejos, refletidos no lamentoso
“blue” que revela uma vida sem sentido.
Não sei até quando o triste (penso que
seja) galo pode resistir à solidão
imposta pelo destino. Imagino que o desespero poderá ser um impulso para uma tentativa de bater asas em fuga
e não conseguir alcançar o Universo, ou, o pior, ser transformado em suculenta
“canja de galinha” por seu dono ou por um vizinho irritado com a desafinada e
melancólica cantoria.
PS: O galo
parou de cantar, esperei dois dias, banquei o Sherlock, fui em busca da verdade
(substantivo tão banalizado ultimamente). Sondei nas redondezas, não encontrei
vestígios de tentativa de fuga, acidente ou retirada violenta, ou terem levado
o infeliz para outras paragens. Conclui, pelo óbvio, que o das penas havia sido
transformado, pelo seu desumano dono, em mísera sopa, o destino inexorável de espécimens dessa
natureza. Para ter certeza, a confirmação seria ir à procura dos resquícios
finais do triste cantor, vasculhar latas de lixos nas imediações, arriscando-me
a adquirir uma infecção. Preferi ficar na dúvida. E padecer, enlutado, pelo
infausto desenlace.
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderExcluirAos leitores: a pedido do autor, Fernando Milfont, o texto epinegético foi substituído pelo galináceo aqui acima. Ao editor horripila censurar, mas quem manda no galo e no epinegético é o autor, soberano da letras e pontuação. E foi feita a vossa (dele) vontade.
ResponderExcluirQue pena!
ResponderExcluirTexto divertido e esclarecedor. Para consolo (meu) voltei ao Clube de Leitura de Icaraí que havia me proporcionado uma outra interessante leitura que gostaria de dividir com o Fernando:
http://clubedeleituraicarai.blogspot.com.br/search?q=big+brother
Em tempo: Creio que devo retirar meu comentário que agora não faz sentido algum mas a opção 'Excluir' saiu da minha tela.
Sendo ardorosa apaixonada da grande obra de Deus, o animal, levo ao Fernando o que vi em minha bola de cristal:
- O galo foi levado pelo porteiro do prédio, nordestino dos bons, para sua distante residencia em Iguaba. Lá faz a alegria dos netos e das franguinhas e aonde seu cantar ainda é o despertador preferido dos vizinhos.
NA MINHA PESQUISA DETETIVESCA, OUVI O PORTEIRO. ELE DISSE NADA SABER, ATÉ RIU QUANDO FALEI SOBRE O GALO. ACHO QUE FOI O PRÓPRIO DONO, POIS O GALO SUMIU PARA SEMPRE.
ResponderExcluirÉ, prezado Fernando, não adianta querer enfeitar a vida. A realidade é sempre mais triste que o sonho. As vezes, na dúvida, prefiro um final feliz.
ResponderExcluirAqui, no Rio, os porteiros andam salvando orquídeas e outras flores colocadas no lixo e embelezando nossas calçadas.
Há sempre uma esperança...