O BISCOITO MOLHADO
Edição 5306 SX
Data: 25 de junho de 2017
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANO: XXXIV
TIO LUIZ
O prédio, branco, bastante antigo, está lá até hoje. Fica na
esquina de Rita Ludolf com General San Martin, bem no final do Leblon. São três
andares, mais um pavimento térreo. A impressão que se tem é a de que parte
deles é ocupada por escritórios. Apartamentos residenciais parecem ser coisa do
passado.
Nos anos 50 um desses apartamentos era ocupado por uma
família chilena. O patriarca era Juan Marchant, um fantástico jóquei que
brilhou durante muitos anos no Hipódromo da Gávea.
Uma leva de profissionais do turfe chileno aportou no prado
carioca nos anos 40 e 50. Todos muito competentes. Lembro, além de Juan
Marchant, de Emidgio Castillo, Oswaldo Ulloa, Luiz Dias e do extraordinário
Francisco Irigoyen. Este, classudérrimo, era o piloto titular do Stud Seabra,
que abrigava grandes campeões. Entre eles Escorial, o super craque que viajou
para Buenos Aires e desbancou a criação argentina no Grande Premio Carlos
Pellegrini, em 1959. No dorso, “Pancho Irigoyen”. Que era tudo, menos um
atleta. Boêmio, dizia não guardar apreço especial por sua profissão. Repetia
sempre: “No me gusta la hípica. A mi me gusta bailar”. Bailou até o dia 20 de
maio de 1984. Foi quando desapareceu. Sumiu completamente. Não se sabe como,
nem porquê. Sequestro? Ninguém sabe. Nunca surgiu uma pista para o
desaparecimento de Francisco Irigoyen.
Voltemos a Juan Marchant. Um belo dia, o barítono Paulo
Fortes, que morava a quatro prédios de distância, bateu à sua porta, conforme
haviam combinado. Foi direto ao assunto: “Marchant, amigo velho, este não está
sendo um ano bom para quem se mete a cantar ópera. A programação do Municipal
anda fraca e eu estou duro feito um coco. Tenho que pagar a prestação do
financiamento do apartamento, o pessoal do Banco do Brasil, você sabe, não dá
refresco. Eu pensei, vou falar com o Marchant. Quem sabe ele me dá uma barbada,
me indica um cavalo meia-bomba que, ganhando, pague uma nota preta a seus
apostadores. Jogo uma grana no bicho e resolvo meu problema...E aí velho,
alguma sugestão?”
Marchant ouviu. Não disse nada. Rosto largo, olhos rasgados,
a revelar sua ancestralidade. Pele queimada, inevitável para quem, todas as
manhãs, exercitava dezenas de cavalos de corrida. Esse silêncio durou um tempo,
até ser rompido por uma frase curta.
“Pablo, sábado, sexto páreo. Tio Luiz”.
“Vamos lá, Marchant, deixa eu ver o programa...sexto
páreo...Tio Luiz...é você que monta esse tal de Tio Luiz! Mas é um cavalo
horroroso! Não vai a lugar nenhum!”
Expressão inalterada, Marchant repete: “joga Tio Luiz...”
Paulo se desespera: “Marchant, o assunto é sério! Tenho
andado muito nervoso! E você me vem com uma maluquice dessas! Esse Tio Luiz
nunca passou de um oitavo lugar! Isso num páreo em que provavelmente correu
sozinho...”
Não disfarçando um ar de enfado, o arauto repetiu pela
última vez: “sexto páreo. Tio Luiz”.
Paulo Fortes agradeceu, educadamente, mas deixou a casa de
Marchant com absoluta certeza de que havia perdido seu tempo. Dormiu mal nas
duas noites seguintes. Chegado o sábado, se arrumou e foi para o Jockey Clube.
No bolso enfiou uma maçaroca de dinheiro, para qualquer eventualidade. Dinheiro
reservado para passar o resto do mês, nunca para apostar naquele estrupício, o
tal de Tio Luiz...
Os páreos foram sendo disputados. O hipódromo estava lotado.
Frequentador assíduo, o barítono permanecia junto de seus amigos. Quarto páreo,
quinto páreo...eis que aconteceu o rompante. Como um raio, ele se dirigiu ao
guichê de apostas, sacou seu maço de notas e bradou: “Sexto páreo, tio Luiz,
Ponta!”
Voltou ao seu lugar. Alguém perguntou e ele, envergonhado,
disse que apostara em Tio Luiz. Risada geral. Interrompida com o início do
“canter”, o galope de apresentação do sexto páreo.
Dava pena o tal do Tio Luiz. Para começar, um cavalo de
porte muito pequeno, em comparação com os demais concorrentes. Certo de que
havia feito uma besteira monumental, Paulo Fortes até achou que o bicho já entrara
na raia mancando. Pelo binóculo, viu se dissiparem suas últimas esperanças. No
dorso do indigitado, a expressão de Juan Marchant revelava profundo desânimo.
Depois de um “canter” desalentador, o barítono mal acreditava que Tio Luiz
pudesse encontrar forças para chegar até o “starting-gate”.
Mas chegou. E foi dada a largada! De acordo com o previsto,
Tio Luiz foi ficando para trás. Mas, surpreendentemente, quando o pelotão
começou a contornar a grande curva, estava próximo dos demais competidores.
Terminou a curva “misturado” com a concorrência. Ao entrarem na reta de
chegada, tio Luiz se aproximou dos ponteiros. Paulo Fortes gritava feito um
louco: “Tio Luiz!”, “Tio Luiz!”. No dorso do matungo, Juan Marchant se agitava
como um demônio. Tio Luiz já ocupava a segunda colocação. Paulo gritava “Tio
Luiz” no mesmo lá bemol em que finalizava a ária de Fígaro, no “Barbeiro de
Sevilha”. Eis que Tio Luiz assumiu a ponta. Paulo passa a gritar no tom em que
encerra a Romanza do “Guarany”, de Carlos Gomes.
Tio Luiz ganhou o páreo. No entorno do barítono todos estão
completamente surdos. O matungo pagou um monte de dinheiro aos seus escassos
apostadores. A prestação do apartamento estava salva.
Durante muito tempo Paulo Fortes, por onde circulava no
Jockey, ouvia dos demais frequentadores um coro frenético: “Tio Luiz!”, “Tio Luiz!”
No meio da crônica já estava, aflita, a lembrar-me do Barão De Itararé:
ResponderExcluir- De onde menos se espera é que não sai nada mesmo.
Ai... mas,
Que bom ficar feliz no final!
Nem sempre foi assim com os páreos de redator...
ResponderExcluirSeguindo a numeração no alto da folha o placar não confirma o redator, a não ser que ele siga o dito "modéstia as favas" e desejar como o Chacrinha, balançar as massas. rs Esto seria una cosa de Diós!!!
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