O BISCOITO MOLHADO
Edição 5300 SX
Data: 16 de junho de 2017
FUNDADOR: CARLOS EDUARDO
NASCIMENTO - ANO: XXXIV
AS APARÊNCIAS ENGANAM
O brilhante ilustrador, chargista e caricaturista Carlos
Estevão apresentava nas páginas de “O Cruzeiro” uma seção de muito sucesso, com
o título “As aparências enganam”. A brincadeira estava em mostrar o contorno de
figuras escuras, aparentemente em situação de constrangimento ou perigo
iminente. Ato contínuo, o artista apresentava a mesma cena, só que, agora,
devidamente “iluminada”. Com todos os detalhes das figuras envolvidas à mostra.
Com isso, era possível perceber que as cenas supostamente assustadoras
inicialmente mostradas estavam revestidas, na verdade, de inocência e candura.
Não esqueço um desenho que parecia retratar uma agressão à
faca, envolvendo esposa e bebê de um suposto desclassificado. Devidamente
clareada, o que se percebia era uma prosaica cena familiar, um gentil marido
besuntando com manteiga os pãezinhos que seriam servidos à sua dileta família.
Na vida real, muita coisa pode acontecer dessa mesma forma.
Com frequência convivemos com pessoas envolvidas em histórias surpreendentes.
Possivelmente com pinceladas de mistério. Casos há em que nos é dada a chance
de decifrá-las. O que nem sempre é possível. Passamos a relatar algumas
situações que poderão ser do interesse dos nossos leitores.
O Tenor
O ano é 1940. O dia, 12 de agosto. Começa a Temporada Lírica
Oficial do Teatro Municipal do Rio de Janeiro, repleta de astros de primeira
grandeza.
“Turandot”, de Giacomo Puccini, abre a temporada. O soprano
Zinka Milanov e o tenor Galiano Masini estão no ápice de suas brilhantes
carreiras. Levam à loucura um Municipal completamente lotado.
Terminado o espetáculo, um jovem estudante do Colégio São
Bento não resiste e se dirige ao camarim daqueles extraordinários artistas.
Enche-se de coragem e pede um autógrafo ao tenor Galiano Masini. Explica que
está estudando canto, que tem voz de barítono. Simpático, o tenor deseja-lhe
sorte e começa a escrever uma dedicatória numa foto em que posa vestindo um
terno elegantíssimo, devidamente engravatado. O artista famoso, que atua nos
mais importantes palcos de ópera do mundo, leva quase meia hora para escrever
uma frase curta. Fica claro, para seu jovem admirador, que se trata de um homem
de pouca cultura.
O jovem não se importa. Ele guardaria essa foto com carinho,
até estrear no Municipal, cinco anos depois. E também durante os cinquenta e um
anos em que desenvolveria naquele palco uma notável carreira de artista lírico.
A propósito, a dedicatória da foto diz o seguinte: “Al giovane barítono Paulo
Fortes, per recordo, Galiano Masini”.
O Atleta
Nos anos 60, João Belo era a “figura carimbada” da rua Paula
Freitas. Não parava quieto. Devidamente paramentado, fazia ginástica no meio da
rua, alardeando grandes proezas atléticas de que era capaz.
Não me lembro de tê-lo visto alguma vez andando. Estava
sempre correndo. E tinha uma especialidade. Correr de costas. Numa velocidade
espantosa. Nos domingos de sol, com a praia lotada, encontrava o público ideal
para cometer suas façanhas.
Na época, achávamos tudo aquilo uma tremenda maluquice.
Cinquenta anos depois, continuo a achar que era mesmo maluquice mas, próximo da
idade que à época provavelmente ele tinha, começo a achar que o sujeito era
realmente um fenômeno.
Ocorre que o problema da garotada era mesmo o de “zoar” com
João Belo. Duvidavam de suas façanhas, o que o levava à loucura. E quanto mais
áspera ficava a discussão, mais nosso campeão exagerava a dimensão de seus
feitos estarrecedores. Ficava furioso com as risadas que provocava. Essa fúria
resultava em mais gargalhadas. Não acabava nunca.
O ponto culminante dessa pantomima aconteceu quando um
gaiato, às vésperas dos jogos olímpicos de Tóquio, em 1964, providenciou a
impressão de um falso jornal norte americano, que estampava em sua primeira
página, em letras garrafais, a manchete: “João Belo é a arma secreta do
Brasil!”.
João Belo enlouqueceu. Finalmente um jornal reconhecera a
dimensão internacional dos seus feitos! E agora, o que seus detratores tinham a
dizer? O burburinho não parava de crescer.
A radicalização das discussões levou alguns integrantes da
turma da Paula Freitas a cobrar de João Belo a comprovação de suas aptidões.
Depois de muitos debates acalorados, uma modalidade atlética foi finalmente
escolhida: o salto em altura.
Quase na esquina de Paula Freitas com Avenida Copacabana uma
mercearia montava um grande engradado para vender garrafas de leite. Isso
mesmo. Garrafas de leite, de vidro, se bem me lembro das marcas CCPL, Vigor e
OFCO. O desafio proposto ao nosso campeão foi o de saltar e ultrapassar a
altura do tal engradado.
Fiquei apavorado, não gostei nada da ideia. Outro que não
gostou foi o dono da mercearia. Mas não teve jeito. No dia aprazado, a rua
ficou coalhada de gente. João Belo se vestiu com esmero para o evento. Camisa
de meia branca e um enorme calção preto, em que a cintura não ficava distante
de seus ombros.
“Cabide”, um dos líderes da turma, zelava pelo cumprimento
das regras olímpicas. Ao seu comando, João Belo tomou distância e partiu em
desabalada carreira. Sou sincero ao declarar que nem com apoio de uma escada do
corpo de bombeiros eu superaria o obstáculo que João Belo se propunha ultrapassar.
E ele quase conseguiu. Com um salto incrível, chegou muito perto do cume dos
engradados de leite. Mas seu pé ficou preso na última fileira de garrafas. Com
isso, toda a estrutura veio abaixo. Centenas de garrafas quebradas. Um mar de
leite cobrindo a calçada. Cacos de vidro que devem estar lá até hoje.
Não sei se nosso atleta viajou para Tóquio. Sei que, da
Paula Freitas, ele sumiu.
O Matemático
Pouco tempo depois do sumiço de João Belo me mudei para a
rua ao lado, a República do Peru. “Moscatel” era seu personagem mais peculiar.
Gordinho, cabeça branca, olhos azuis, nunca entendi o porquê do apelido.
“Moscatel” não falava. Repetia sem parar apenas três ou
quatro palavras, ou nomes, que jamais decifrei. Era algo próximo de “Prá
Fernando, prá Eurídice”. Era só o que ele falava. Não fazia mal a ninguém.
Andrajoso, mas jamais com aparência de sujo. Todos os moradores da República do
Peru tentavam interpretar o que se passava na cabeça do “Moscatel”. Para
alguns, “Fernando” e “Eurídice” seriam seu filho e sua mulher, mortos em
circunstâncias trágicas. Ninguém jamais conseguiu saber.
O primeiro ano em minha nova rua foi bastante tenso, na
medida em que se aproximavam as provas do vestibular. Eu era aluno do Santo
Inácio, o que significava meio caminho andado. Faria certamente boas provas de
Português, línguas e conhecimentos gerais. Tiraria “de letra” a redação. Mas a matemática... Com
ela jamais tive uma relação cordial.
Minha meta era passar na UFRJ, no que então se denominava
Faculdade Nacional de Economia. Depois de onze anos de mensalidades no Santo
Inácio, queria dar uma folga a meu pai, cursando uma faculdade do governo.
Sabia que a prova de matemática da Nacional não seria fácil.
Provavelmente preparada por um matemático famoso, o Professor Rio Nogueira. Que
tinha fama de ser levemente sádico.
Ciente disso, não me restava alternativa, naquele momento, a
não ser estudar loucamente a matemática. Duílio Nogueira, meu professor no
Santo Inácio, era excelente. Mas, por conta de minhas limitações, que eu
reconhecia, e de uma dose cavalar de insegurança, decidi agir por conta
própria. Comprei um monte de livros americanos. Sobre o piano de cauda de minha
mãe mantinha estocados dois palmos de exercícios de geometria analítica,
trigonometria e que tais.
Dúvidas eu tirava com o Fernando, colega da República que
estava próximo de completar o curso de engenharia. Mas ele nem sempre estava
disponível. Um dia, Fernando me deu uma dica: “Perguntar não adianta, porque
ele não vai falar nada. Mas, se você enguiçar em algum exercício, é só entregar
para o “Moscatel” que ele resolve”.
Pensei que o Fernando estava brincando. Mas não estava. Dois
dias depois empaquei com um problema de geometria analítica, proposto por um
livro americano. Entreguei para o “Moscatel” livro, caneta e um bloco de papel.
Pela primeira vez o vi proferir uma palavra diferente de “Prá Fernando, prá
Eurídice”. Essa palavra foi “elementar”. Que ele repetia sem parar enquanto
resolvia o problema. Com incrível rapidez e precisão.
Isso durou o ano inteiro. Quase fiquei surdo de tanto ouvir
“elementar”, “elementar”.
Vou morrer sem matar essa charada. Qual seria a história do
“Moscatel”? Que estudos ele fez? Trabalhou? Tinha família? O que determinou seu
alheamento?
Fui morar no Leblon. Anos depois fiz uma visita à minha
antiga rua. Em busca de gente para jogar uma conversa fora. Fiquei sabendo que
o “Moscatel” havia sumido.
A Miss
Com dezoito anos comecei a achar que cerveja, afinal, não
era uma coisa tão ruim assim. Mais amarga do que a Coca Cola, o Guaraná ou o Grapette,
ainda assim ela começou a ganhar posições no meu hit parade. E depois de algum
tempo, domingos de praia com sol de maçarico acabaram por conduzir a “loura” ao
primeiro lugar na parada de sucessos.
Fiz, ainda, outra descoberta importante. Não era
imprescindível a presença do sol para se tomar cerveja. Também à noite seu
gosto era muito bom. Comemorando essa descoberta, comecei a acampar num pé sujo
que ficava numa esquina de República do Peru com Barata Ribeiro. Era um lugar
luxuoso. Para sentar, tínhamos à nossa disposição os barris de alumínio que
acondicionavam o excelente chopp que o estabelecimento servia.
Meus companheiros de bar, bem mais velhos, não eram citados
na coluna social do Ibrahim Sued. Destaque para uma francesa, queimadíssima de
sol, sotaque bastante carregado. Devia ter algo entre 50 e 60 anos. Com todas
as vicissitudes que a vida lhe havia imposto, ainda assim eu acreditava que ela
poderia ter sido uma mulher muito bonita.
Marie, esse era o seu nome, falava pelos cotovelos. Contava
mil histórias, mencionava romances com personalidades do grand monde, viagens
mirabolantes. Ninguém prestava muita atenção à sua conversa, considerando que
certamente ela era turbinada por sua exemplar capacidade de beber cerveja.
Até que chegou o dia em que vi meus colegas de bar
incomodados. Foi na noite em que Marie mencionou sua participação relevante em
concursos de beleza promovidos na Europa. O pessoal achou que era demais. Nossa
amiga havia passado dos limites.
Maliciosamente, ela deixou que todos os seus críticos
manifestassem sua incredulidade. E até mesmo seu desconforto diante de relatos,
tudo indicava, desprovidos de fundamento.
Quando os protestos chegaram ao seu nível máximo, Marie
pediu licença: “Volto já...”. Ela morava perto, retornou em cinco minutos.
Carregada de álbuns de fotografias. Eles continham coberturas e punhados de
fotos dos concursos de beleza que ela havia vencido. Inclusive o de Miss
França. Sua carreira de modelo também estava ali fartamente documentada.
De queixo caído, ninguém pediu desculpas. Mas queriam, a
todo custo, saber que caminhos tortuosos uma mulher tão especial havia trilhado
para acabar ali, em tão más companhias.
Breve currículo:
ResponderExcluirCarioca, nascida em Botafogo em 08/09/1944, filha de mãe espanhola e pai português, comerciantes, moradora na Praça XV de Novembro, comercial básico (equivalente ao ginásio) concluído na Escola Santa Teresa, na Lapa, Técnico de Contabilidade concluído na Escola Leonel de Azevedo na Ilha, aposentada pelo COMAER no qual trabalhei durante 34 anos e mais dois em Empresa Privada. Mãe e avó. Apenas um grande vício, LER. Vivo sem televisão, sem cinema ou teatro se preciso for, sem livros, jamais.
Nada de mistérios, portanto.
Adentrei o fabuloso mundo da NET por meio do SDR de difícil convivência com quem tem opinião diferente e o hábito de lutar por suas idéias. Por sorte, muita sorte, não cheguei a encaminhar minhas fotos do Centro com familiares. Inéditas.
A luta pela sobrevivência me afastou do meu sonho que era cursar Letras. Preferi investir em meus filhos.
Meu grande e único medo na vida é ficar doente de Alzheimer e perder a minha memória como ocorreu com meu marido.
Se estou lançando sombras, peço desculpas.
Sempre me repeti ao afirmar que, sou simples, não simplória.
Sempre acreditei que quem posta quer ser visto e comentado. Se errei, por caridade, me corrija.
Conheci em minha maravilhosa infância alguns personagens e suas idiossincrasias, como uma ótima compositora que cheirava éter, um comunista que escondia livros sob a capa da Bíblia e diversos mendigos cada um com sua história. Todos possuíam uma coisa em comum, tinham medo de gente!
E não é para ter?
Prezada Elvira,
ResponderExcluirAqui todo mundo escreve o que quer e ninguém tem razão. Inclusive o dono do blog, que nos espia de alguma esquina do Walhala.
A melhor coisa do blog é a oxigenação, que é a palavra do leitor. Eu gostaria que os redatores, sempre ocupadíssimos, dessem uma palinha aos leitores, mas vivo frustrado, decepcionado, sempre com uma espada à mão para dar-me cabo com a dignidade que o seu O BISCOITO MOLHADO exige.
Aproveitei este seu texto de abrangência além do texto da edição para expressar a minha preferência ao leitor, em detrimento desses escribas escorregadios como argumentos jurídicos.
Obrigado e continue assim.
"Gato escaldado de água fria tem medo."
ResponderExcluirUma das minhas qualidades, entre as poucas, é reconhecer o potencial do inimigo. Outra é não cometer o mesmo erro duas vezes.
Já estive durante um bom tempo em um blog maravilhoso de ampla cultura geral. Rondaram, rondaram, partiram para o ataque e, pasme, o blog, que era de SP, acabou. Fiquei quatro anos com medo de NET, misóginos e "fantasminhas."
Seguindo o exemplo da "Miss", para que não houvesse enganos, me apresentei.
Sou apenas uma "Nemê". rs
Em tempo: Não há necessidade de palinha.
Ele nos espia. É certo. A primeira vez que me aventurei por outros anos caiu em 22.12.2015: NESSUN DORMA – O último ato (19/12/2015).
Corrigindo: houvessem enganos...
Excluir