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quinta-feira, 27 de junho de 2013

2405 - tolices e asneiras em debate


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O BISCOITO MOLHADO
Edição 4205                              Data:  09  de Junho  de 2013
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O QUE FLAUBERT TERIA ESCRITO

Disse o grande escritor norte-americano Mark Twain:
“A diferença entre a palavra exata e a palavra quase exata é a mesma diferença entre o vaga-lume e o raio.”
Essa frase se coaduna com a busca incessante de Flaubert pela palavra precisa, Le mot just. Pelo que se diz, ele, mesmo noivo, se confinou por cinco anos para escrever “Madame Bovary”, romance publicado em 1857, embora já fosse do conhecimento público por ter saído em série na revista literária La Revue de Paris durante dois meses e meio em 1856. O romance não é volumoso como “Guerra e Paz”, de Tolstoi”, e “Os Miseráveis”, de Victor Hugo, que ultrapassam as 1000 páginas, “Madame Bovary”, dependendo da edição, não alcança 300. Por que, então, Flaubert demorou tanto tempo para escrevê-lo? Por causa da sua busca obsessiva pela palavra precisa,  Le mot just. Escreveu ele que “Uma boa frase em prosa deve ser como um bom verso na  poesia: imutável.”
Nélson Rodrigues, autor prolífico, quando citava Flaubert, nas suas crônicas, era para falar da comemoração que fazia quando punha no papel duas frases em 15 dias. Exagero compreensível, porque o estilo do nosso dramaturgo dostoievskiano era hiperbólico e, muitas vezes, sarcástico.
Nessa questão de colocar a palavra errada numa frase, já exemplifiquei, tempos atrás, com o técnico da seleção brasileira de 1994, na Copa do Mundo nos Estados Unidos, mas não custa repetir a frase agora. Criticado porque a nossa seleção jogava defensivamente, Carlos Alberto Parreira disse, numa entrevista, que o gol era um detalhe. As críticas, naturalmente, recrudesceram ainda mais, e tudo porque ele não usou a palavra exata: consequência. O gol era uma consequência.
Aquela seleção, que se tornaria campeã do mundo, não tomava a ofensiva, deixando a defesa com brechas para o inimigo ocupá-las, por isso, o gol passou a ser a consequência de uma estratégia cautelosa.
Formado com 23 anos de idade em Educação Física, estudioso da teoria futebolística, Carlos Alberto Parreira também se dedicava à pintura e à fotografia, não era, portanto, de cometer erros na sua fala. O mesmo não acontece, por exemplo, com a apresentadora da TV Globo, Ana Maria Braga, que apresenta um programa de amenidades que descamba, às vezes, para as futilidades, tudo entremeado com receitas gastronômicas. Nada contra as receitas, até o celebrado escritor Alexandre Dumas, que era gourmet e gourmand, escreveu um livro sobre os ingredientes de diversos quitutes, iguarias e pitéus. Sem esquecer Rossini, mestre da ópera, que deu nome a suculentos tournedos. Na verdade, o chef de cuisine Marie-Antoine Carême criou o prato em que homenageou o grande compositor: “Tournedos Rossini.
Zapeando pelos canais da TV a cabo, parei por minutos no “Só Você”, porque mostrava uma exibição de artistas brasileiras em Portugal com a citada apresentadora. Trata-se de um vídeo tape, pois ao término do mesmo, vê-se a Ana Maria Braga nos estúdios da TV Globo concluindo sobre o que se viu:
-“A gente volta de Portugal com um adjetivo: saudade.”
Adjetivo?... Eis um erro substantivo. Mas cabeças coroadas da cultura europeia cometeram também erros, alguns ainda maiores do que o erro gramatical acima, se é que existe um estalão para dimensionar as besteiras ditas e escritas. Temos, então, de voltar ao perfeccionista Gustave Flaubert.
Depois de escrever “Bouvard e Pécuchet”, dois desastrados funcionários que se conhecem e passam a estudar e a praticar tudo o lhes ampliasse o horizonte cultural, acumulando equívocos e incompreensão, Flaubert se detém em transcrever as asnices que lia e escutava. Infelizmente, a morte cortou a pretensão metódica e racional do seu trabalho, que já tinha um título: Dicionário das Ideias Feitas. Ficaram os manuscritos inacabados com o Catálogo das Ideias Convencionais, alguma delas transcrevemos aqui para mostrar que mesmo os mestres erravam rotundamente. Lembrando o que escreveu Carlos Drummond, numa crônica, quando se referiu ao passe que Pelé deu para o adversário, a poucos metros dele, numa partida, “Também Pelé tem seus momentos de não Pelé.”

“A água foi feita para sustentar esses prodigiosos edifícios flutuantes chamados navios.”
Quem mostrou essa fixação pelas majestosas embarcações marítimas, não vendo outra serventia para o mar, foi Fénelon. Era um poeta e escritor francês (1651/1715), cujas ideias liberais contrariram a Igreja e o Estado.
O que diria, então, Flaubert, se presenciasse a aula de um professor meu de Acondicionamento de Cargas na Marinha Mercante, ao ouvi-lo dizer extasiado: “Não existe nada mais lindo do que um navio bem carregado.”?
Alexandre Dumas Filho criou “A Dama das Camélias”, mas nem sempre esteve inspirado, o que prova esse texto que Flaubert julgou digno dos seus personagens  Bouvard e Pécuchet:
“A posteridade, a cujo julgamento Goethe confiou suas obras, fará o que lhe compete, escrevendo no bronze: “Goethe, nascido em Frankfurt, em 1749, morto em Weimar, em 1832. Grande escritor, grande poeta, grande artista.” E quando os fanáticos da forma pela forma, da arte pela arte, do amor acima de tudo e do materialismo, vierem pedir-lhe que ajunte “Grande Homem”, a posteridade responderá: “Não!”
Lembramos aqui que o filho do autor do “Conde de Monte Cristo” contrariou Napoleão Bonaparte que, ao se avistar com o grande artista, em Erfurt, no dia 2 de outubro de 1808, declarou para ser ouvido por todos: “Eis um homem. Vejam: é um ser humano por inteiro.”
Guy de Maupassant, talvez o maior contista da literatura universal, discípulo de Flaubert, registrou a surpreendente capacidade do seu mestre para descobrir, de imediato, as tolices.  E conta que, ao ouvir a frase que se segue do discurso de recepção ao teatrólogo Eugène Scribe, na Academia Francesa, Flaubert registrou:
“Revogação do Édito de Nantes, 1685. Morte de Molière, 1673.”
Eis a frase:
-“A comédia de Molière nos instrui a respeito dos grandes acontecimentos do século XIV? Diz-nos uma palavra sobre os erros, as fraquezas ou as faltas cometidas pelo grande rei? Fala-nos da revogação do Édito de Nantes?”
Com isso, fui levado para anos atrás quando, no meu trabalho, falei sobre a vida de Tchaikovsky vista por Ken Russell no filme “Delírio de Amor”.  Fui interrompida por uma colega, com penachos de culta, que disse que Beethoven deu em cima da mulher de Tchaikovsky.
Flaubert teria escrito: morte de Beethoven, 1927, nascimento de Tchaikovsky, 1840.




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