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O BISCOITO
MOLHADO
Edição 4147 Data: 10
de Março de 2013
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83ª VISITA À MINHA CASA
2ª PARTE
-A morte de Ermelino foi a
grande tragédia da minha vida.- comoveu-se Francesco Matarazzo, apesar da
tentativa de represar a carga emotiva, própria dos italianos do sul.
-Essa morte o fez sair de
novo da Itália para voltar ao Brasil.
-Não; eu já retornara antes,
em 1919, para retomar a direção dos negócios. Depois de muito trabalhar, chegou
a hora do Ermelino sair de férias, e ele
foi para Nova York, Londres e Paris. Era evidente que a Itália tinha de estar
no seu roteiro; então, ele resolveu ir de carro de Turim até o Mont Cents, na
França, ao norte de Besançon, com o irmão mais velho, Giuseppe e alguns amigos.
-Li na biografia escrita pelo
Ronaldo Costa Couta que era janeiro de 1920, que a estrada estava escorregadia
com a neve, mas era ampla, de uns quinze metros de largura. O carro tinha o
volante no lado direito, com dois lugares na frente, dois no meio e dois atrás. A tragédia aconteceu n cidadezinha de
Bruzolo, em Piemont, quando o motorista se atrapalhou com um ciclista que vinha
em sentido contrário, o carro ficou desgovernado, subiu um barranco...
-E virou justamente no lugar
onde estava o Ermelino. - emocionou-se
às lágrimas.
-Você foi a Turim, cuidou de
tudo, mandou que embalsamasse o corpo do filho, que foi trasladado para São
Paulo.
-Fechei o quarto do meu
filho, como estava e nunca mais o abri.
-Assis Chateaubriand, com 28
anos de idade, então redator-chefe do Jornal do Brasil, redigiu um necrológio
que emocionou toda a sua família.
-Eu quis me encontrar com
ele; e disse-lhe, então: Doutor Assis, o senhor foi muito generoso com meu
finado filho; desculpe a intimidade, mas esta é uma superstição da Itália, onde
nasci: esfregue as pontas do dedo aqui no meu paletó, que é para eu passar-lhe
um pouco da minha sorte.
-E como passou a sua sorte,
ele se tornou o megaempresário da imprensa.
-Eu não imaginava que ele me
causaria tantos aborrecimentos.
-A intenção dele era que você
utilizasse os seus jornais para fazer propaganda dos produtos que
comercializava.
-Se eu vendia tudo o que
produzia para quê reclames em jornal e revistas?... Num dia de 1934, ele veio
se avistar comigo e lhe mostrei os
perus, veados, jumentos e búfalos que eu possuía, ele não viu uma chaminé,
andou apenas pela minha granja.
-Assis Chateaubriand reclamou
muito, disse que teve de andar três
horas sob um sol de estalar mamona, sem que você parasse de falar de assuntos
agro-pecuários.
-Era para ele saber que,
mesmo octogenário, eu estava sólido como uma rocha.
-E o seu entusiasmo por
Mussolini?
-Senti na própria carne a
pobreza da Itália, vi um povo humilhado. Surge, então, um líder que revigora o
país, que resgata até o orgulho que remontava ao império romano, era
compreensível que eu me entusiasmasse. Fui recebido por Mussolini no final de
1923 e fiquei impressionado. Os trabalhadores mostravam um patriotismo nunca
visto, os trens passaram a ser pontuais...
-Mussolini, com sua retórica
populista, recorrendo à farta propaganda, à doutrinação política, ao
gerenciamento do orgulho, da esperança, enquanto esmagava a oposição e
controlava a imprensa, como escreveu Ronaldo Costa Couto, deu início a uma
insidiosa ditadura que até hoje é imitada em diversos países.
-A minha lucidez estava nos
negócios, não na política. Morri em 1937 e fui poupado de assistir ao malogro
do fascismo.
-E as crianças trabalhadores,
Conde Francesco Matarazzo?... Consta que, em 1920, quase 10% dos operários paulistas tinham menos de quatorze anos, que muitas das
suas fábricas estavam adaptadas com máquinas e ferramentas de tamanho reduzido
para que pudessem ser manejadas por crianças. Parecia até o capitalismo
selvagem da Inglaterra de Charles Dickens.
-Eram tempos duros, eu também
iniciei no trabalho com menos de quatorze anos. Nessa época, não tínhamos
infância, espero que as crianças de hoje tenham.
-Conde, Ronaldo Costa Couto, sobre esse caso,
se reporta à mãe da historiadora Maria Angélica, que conta um encontro casual
da mãe dela, sua nora, com uma velhinha
na igreja que você costumava ir na festa de São Vito Mártir. Afirmou a velhinha
que trabalhou numa das suas fábricas desde os doze anos de idade, que você foi
o homem mais generoso que conheceu na vida. E concluiu a sua neta: “Uma coisa
espantosa, não é?!... Hoje todos consideram escandaloso que uma menina de doze
anos trabalhe numa fábrica. E é mesmo.
Mas a lembrança que ela guardou do meu avô é uma coisa extraordinária.
As coisas têm de ser entendidas e analisadas no contexto em que ocorreram.”
-As crianças ajudavam na
receita da família naqueles tempos difíceis, ragazzo.
-Infelizmente, essa situação
ainda perdura em muitos países atrasados.- declarei.
-Nas classes mais abastadas,
eu espero que não?...
-Nessas classes, as crianças
também sofrem; além dos estudos essenciais, têm de frequentar cursos de
línguas, aulas de natação, judô, dança, ou lá o que seja, enfim, ficam cheias
de compromisso, como os adultos, sem tempo para brincar, de desfrutar a infância.
-Apesar da alegria esfuziante
dos italianos, eu não tive muito tempo, quando menino, para os folguedos,
trabalhei nessa idade. Mas sonhei sempre.
-A propósito, Conde, o
jornalista Vicente Ragogneti, que dirigia um jornal humorístico, Il Moscone,
cujo lema era “Para as moscas e os jornalistas, não há lugar proibido”,
fez-lhe, segundo o seu biógrafo Ronaldo Costa Couto, a seguinte pergunta:
-”Conde, quando era moço o
senhor sonhou algum dia com tudo isso que já fez na vida?
-E respondi:
-"Eu!: Mas se ainda vivo a
sonhar!”
-Você teve mais de duzentas
empresas; era detentor da quarta maior fortuna do Brasil, perdendo apenas para
o PIB do Brasil, para o Estado de São Paulo e para a receita com a exportação
do café.
-Enquanto tive saúde,
trabalhei com uma vontade férrea.
-E quando ela começou a
fraquejar?
-Quando o médico recomendou
que eu reduzisse a garrafa de vinho que eu tomava diariamente para um copo apenas. Tive, então, de comprar
um copo de quase um litro para beber o meu vinho.
-E o médico?...
-Quando soube, diminuiu a
cota de vinho para um dedo.
-E o vinho da sua predileção
era um tinto escuro, muitíssimo encorpado e alcoólico.
-Vinha das montanhas
pedregosas da minha terra natal, Castellabate.
-Era uma maneira de você
voltar à sua origem.
-Sim; sem o meu vinho diário,
eu me senti velho e doente.
-E morreu com 82 anos de
idade de uremia.
-Foi quando deixei de
trabalhar.
Disse, enquanto partia para
outras plagas.