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quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

2103 - táxi novo na parada

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3903 Data: 18 de fevereiro de 2012

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OS TAXISTAS, ANTES DO CARNAVAL

A viagem do metrô em que fui espremido da cabeça aos pés não me tirou o humor.

-Se não fosse o meu curso de sobrevivência na selva, eu já teria desistido do metrô. - declarei ao entrar no táxi do Bob Esponja.

-Eu só pego o metrô quando saio no Bola Preta.

-Escutei, nas minhas caminhadas, que o Bola Preta não sairia hoje porque a greve dos policiais da Bahia se alastrou para o Rio de Janeiro.

-A coisa ficou feia para os baianos, para nós, não. A polícia garantiu proteger os foliões e o Bola Preta resolveu colocar o bloco na rua.

-E você vai?

-Não, tenho de trabalhar; sairei no sábado. No carnaval ...

Nesse instante, o seu celular o interrompe. Tira-o do bolso, lê alguma coisa no visor e o coloca de onde o sacou.

-Elas não largam... Mas a gente faz bem feito... - disse voltando-se para mim com as mãos no volante do carro.

Mesmo sem entender o sentido das suas palavras, percebi que exaltava a própria virilidade. Nada falei, e ele prosseguiu:

-Tenho conseguido algumas mulheres pela internet. Você troca umas mensagens durante uns cinco dias e quando conhece a mulher, pessoalmente, ela o trata como você se relacionasse com ela há décadas.

-Tenho uns conhecidos que também procuram mulheres pela internet.

Não lhe disse que eram justamente os motoristas e os mensageiros do meu trabalho para não lhe tirar o penacho de conquistador.

Bob Esponja reatou logo a sua oratória, pois não possuía a paciência dos ouvintes.

-Uma dessas donas, mal foi apresentada a mim, pois até então tudo era virtual, me chamou para ir a casa dela. “Você está louca!”.

Apesar da ênfase da reação do Bob Esponja diante de tal proposta, ele a aceitou.

-Eu não queria que o filho dela, um garoto de uns dez anos, me visse de chinelo pela casa na hora do café da manhã. Acordei às 3 horas da manhã, tomei um banho, vesti-me, despedi-me da fulana e saí.

Como eu não estava interessado na vida sexual do Bob Esponja, mantive-me calado.

-Não fui para casa, aproveitei que estava desperto e resolvi dar início ao meu trabalho no táxi às 3 e meia da manhã.

E concluiu, já na Rua Modigliani.

-Quando elas dão de telefonar muito é porque estão se apaixonando, então, eu passo para outra mulher. Afinal, eu tenho a minha noiva.

Saltei do táxi do Bob Esponja pensando na Rosa Grieco, que me sugeriu mostrar as mulheres nuas do Modigliani para os taxistas, assim, segundo ela, eles compareceriam na exposição do pintor italiano no Museu Nacional de Belas Artes.

No dia subsequente, entrei no táxi de um motorista que, apesar de pertencer à cooperativa Metrô Táxi, eu nunca vira antes.

-Rua Modigliani, na Praça Manet.

-Praça Manet. - repetiu abrindo o “e” e mantendo o “t” mudo, transformando assim o pintor de Déjeuner sur l' Herbe em Mané.

Como não era um velho conhecido, recorri à minha economia verbal. Ele, por outro lado, parecia atento ao rádio da central da cooperativa. Quando ele dobrou à esquerda, evitando subir toda a Rua Domingo de Magalhães, quebrei o silêncio.

-Aquele cruzamento da Domingo de Magalhães com a Miranda Vale e a Conde de Azambuja, lá em cima, é muito perigoso.

-Perigoso demais, eu sempre evito quando posso. Já vi um carro ser arrebentado lá, porque as pessoas não tiram o pé...

-Deveria ser mão inglesa ali. Um quebra-molas também é necessário.

-O quebra-molas diminuiria o número de acidentes. - concordou ele.

-A maioria dos seus colegas dobra à esquerda, como você fez, mas outros encaram o cruzamento. Eu não falo nada, pois estão com pressa, sem que eu saiba, e por isso sobem toda a Domingo de Magalhães.

-Um dia, uma passageira ordenou: “Sobe, sobe, não vai para a esquerda, não; e eu tive de obedecer.

-Ela economizou o quê?... 50 centavos?...- ironizei.

A corrida se encerrou com ele, seguindo minha orientação, descendo a Rua Sisley, dobrando à direita, na Rua Modigliani e parando no segundo poste.

No dia que se seguiu, o táxi que me aguardava era do Flamenguista. Nós nos saudamos e, o que era de acontecer com ele, falamos de futebol, embora por vias indiretas.

-Você viu esse menino de 14 anos que morreu jogando bola num centro de treinamento do Vasco da Gama?- perguntei.

-Uma barbaridade. - reagiu.

-O garoto, chamado pelo Vasco, prometeu aos pais, em Minas Gerais, que agarraria a sua chance com unhas e dentes, e viajou.

-Esses garotos que vêm de longe tentar a sorte são, geralmente, pobres, mal alimentados. - interveio.

-No centro de treinamento do Vasco, não lhe deram um sanduíche para comer. Ele foi jogado no campo para correr atrás da bola.

-Correr atrás da bola debaixo de um sol de 40 graus. - lembrou.

-Você assistiu a final da Copinha de São Paulo, para jogadores juvenis, no dia do aniversário da cidade?

-Não assisti porque estava trabalhando, mas sei que o jogo começou às 9 horas da manhã.

-São garotos que estão na vitrine para ser vistos por dirigentes, empresários. É a grande oportunidade de eles alcançarem dinheiro e celebridade, então, eles correm pelo campo como uns desesperados, mesmo que o calor atinja 50 graus.

-É isso mesmo. - concordou.

-Esse menino de 14 anos morreu porque o desrespeito pela vida dele ainda foi maior. - afirmei.

-Eu soube que ele chegou com um atestado médico, mas que não havia ninguém no Vasco para avaliá-lo.

-Eu ouvi a entrevista de um profissional de medicina esportiva e ele afirmou que sempre haverá um médico para dar um atestado para uma pessoa sem avaliar a sua saúde, como se deve. Também afirmou que a inexistência de atendimento médico adequado acontece no centro de treinamento do Vasco e de quaisquer outros clubes brasileiros.

-Isso é verdade – interrompeu-me e frisou:

-Os clubes não têm dinheiro para pagar seus jogadores, o que falar em investimentos na saúde dos jogadores do futebol de base?

-Nesse caso, não compraram nem cachorros quentes para a molecada enganar o estômago. - declarei, enquanto ele parava o táxi na Rua Modigliani.

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

2102 - súplicas repelidas

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3902 Edição 17 de fevereiro de 2012

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COMENTÁRIOS SOBRE AS EDIÇÕES PASSADAS

PARTE II

Registrei na edição do Biscoito Molhado sobre o almoço no Adegão Português que o sommelier Dieckmann (*) aplaudiria o Elio Fischberg, que pediu vinho branco, mas não o Luca, que preferiu o tinto. Mal nosso jornalzinho chegou às mãos da Rosa Grieco, ela manuscreveu o que se segue:

“... no 3890 (número da edição) o comentário sobre vinhos brancos para os “poissons” (peixes), lembro que há uma honrosa exceção para o bacalhau que os pede tintos. Uma escolada Embaixadora com feijoada servia vinho verde. Isso é o que se aprende nas Embaixadas, incluindo aulas para comer banana de garfo e faca.”

Apesar de a Rosa já ter revelado que só bebe vinho do Porto e Jerez, ela já encerrou diversos comentários com a saudação “Evoé”, o que nos leva a pressupor que ela entende do assunto; assim, o Departamento de Pesquisas do Biscoito Molhado saiu em campo.

Descobriram os nossos pesquisadores que os portugueses afirmam enfaticamente: “bacalhau não é peixe nem carne, bacalhau é bacalhau.” Isso posto, ao se escolher o vinho para acompanhar as bacalhoadas, não devemos aplicar as regras clássicas, devido às suas características exclusivas e porque a escolha depende do modo como o prato é preparado.

Eça de Queirós que, como Alexandre Dumas, também entendia profundamente de arte culinária, redigiu o seguinte trecho que se acha no livro “Comer e Beber Bem com Eça de Queirós:

“Em Portugal é tradicional acompanhar os pratos de bacalhau com vinho tinto. Este “casamento” feliz explica-se pela ação do tipo de vinho tinto de sabores frutados presentes nos vinhos tintos tantos que, dando-nos uma sensação gustativa indireta da doçura, amenizam o gosto “oposto” salgado do bacalhau.”

“Para receitas mais condimentadas de bacalhau, é também vantajosa a existência dos aromas que se formam durante o envelhecimento em garrafa, que se ligam com outros temperos. (...) vinhos alentejanos de boa estrutura e com um envelhecimento curto em garrafa apresentam estas características.”

Longe de toda essa polêmica vinícola, eu pedi, no Adegão Português, sob um calor de 40º C, para acompanhar a bacalhoada, uma cerveja bem gelada.

Antes de passarmos para outra edição do Biscoito Molhado, um esclarecimento aos leitores que não identificaram os comensais chamados de Bem Apanhado e Apolíneo. Segundo a Rosa, Bem Apanhado é o Fischberg, pela sua exuberante cabeleira grisalha, e Apolíneo é o Luca, que possui o corpo dos gregos do tempo da guerra do Peloponeso.

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Continuando com a caçulinha do implacável crítico literário, Agrippino Grieco, ela fez a seguinte anotação sobre o mais recente Biscoito Molhado das minhas reminiscências:

“No 3895, o comentário sobre algodão doce parecer barba de Papai Noel encaixa no que é chamado em francês: “Barbe à papa”, um bão gaúcho o chamava de “Cabelo de fada”.

O gaúcho foi mais poético, os franceses, mais realistas; de qualquer maneira, fiquei em boa companhia.

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Um leitor reportou-se a alguns diálogos que antecediam o Sabadoido sobre os Kennedy, quando eu falava que, mesmo velho, o patriarca da família era surpreendido pela mulher, Rose, beijando a secretária, a jovem Michelle e indaga se a mãe do presidente dos Estados Unidos sempre foi submissa.

Resposta: Rose Kennedy soube esperar.

A submissão dela diante do marido atingiu o grau mais elevado quando Joseph Kennedy mandou lobotomizar a sua filha, Rosemary, sem consultar a esposa. Rosemary nasceu com distúrbios mentais, tinha rompantes de agressividade e foi internada num hospital. Crescida, demonstrando atração pelo sexo oposto e, vez ou outra, fugindo do hospital, preocupou sobremaneira o seu pai: uma gravidez causaria um escândalo que repercutiria nas ambições políticas dos Kennedy (Escândalo?!... Seria cômico, se não fosse trágico).

Rose Kennedy sofreu muito em ver a filha transformada em zumbi, mas suportou o golpe.

Muitos anos depois, quando o filho presidente, John Kennedy e o filho procurador-geral da República, Robert Kennedy, impedem o pai de agir por eles, este sofre um derrame cerebral, perdendo a fala e ficando entrevado numa cadeira de rodas.

Ao vê-lo inválido, a mulher o associa, como uma ideia fixa, à filha lobotomizada. Sem perder muito tempo, despede a Michelle, secretária e amante do marido, apesar dos protestos que ele deixava escrito nos papéis: REVENGE (vingança).

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Um leitor reclama do Biscoito Molhado que citou as magistrais primeiras frases das grandes obras literárias, mas deixou no esquecimento a abertura do Moby Dick, de Herman Melville, que é uma mostra genial do lead (lide) jornalístico.

Para quem conhece perfeitamente o lead, sabe que o leitor está coberto de razão. Eis o que se ensina sobre o lead:

-”Ferramenta teórica sistematizada na primeira metade do século passado, a partir de uma frase do escritor e jornalista inglês Rudyard Kipling, que dizia: “Tenho seis criados honestos, que me ensinaram tudo o que sei: O Quê, Por Quê, Quando, Como, Onde e Quem”. O lead norte-americano manda que o repórter, diante de um fato, busque resposta para essas seis questões. A partir dessas respostas, ele monta seu texto. O resultado do escrito a partir dessas respostas é o que chama de “pirâmide invertida”: em que as informações mais relevantes acerca daquele fato apurado se concentram no primeiro parágrafo do texto. Meio século atrás, nos primeiros tempos de prática da técnica do texto jornalístico, no Brasil, exigia-se que cada um dos dois primeiros parágrafos fosse escrito numa frase só, sem ponto. Eram o lead e o sublead, de preferência com cinco linhas, cada. A quebra paulatina dessa rigidez ajuda a explicar a mudança de lead para abertura. Qualquer que seja a designação, entretanto, continua a valer o princípio de que as primeiras linhas de um texto jornalístico devem prender a atenção do leitor. Depois do título e do subtítulo, é pela abertura que se agarra o leitor (...).”

E é isto que Herman Melville faz no primeiro parágrafo do seu clássico Moby Dick.

-“Chamai-me Ismael. Faz alguns anos – não importa quantos, precisamente – tendo na bolsa escasso ou nenhum dinheiro e nada que particularmente me interessasse em terra, achei que devia velejar um pouco e ver a parte aquosa do mundo. É um hábito que eu tenho, para acabar com o tédio e regular a circulação. Sempre que começo a ficar austero; sempre que é um novembro úmido e chuvoso em minha alma; sempre que dou comigo a parar involuntariamente diante de empresas funerárias e a cerrar fila em cada enterro que encontro; e especialmente sempre que minha hipocondria adquire tal domínio sobre mim que é preciso um sólido princípio moral para impedir-me de sair deliberadamente para a rua e metodicamente surrar as pessoas – então, acho que está na hora de ir para o mar o mais depressa possível. Este é o meu sucedâneo para a pistola carregada. Com um floreio filosófico, Catão se atira sobre a espada; eu calmamente vou para o navio. Não há nada de surpreendente nisso. Quase todos os homens (soubessem eles) qualquer que seja a sua classe, uma vez ou outra compartilham comigo quase que os mesmos sentimentos com o oceano.”

(*) Quando o redator do seu O BISCOITO MOLHADO aborda a Rosa Grieco absorve um pouco da irrascibilidade da moça e sai tascando opiniões a torto e direito, como se moça fosse. Dieckmann nunca foi sommelier, não gosta de vinho branco - com exceção de espumante - bebe vinho tinto quando come bacalhau e, em hipótese alguma, aplaudiria o Elio Fischberg. Então, o período asteriscado é um exercício de egonímia nauseossuplicante.

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

2101 - Kicoisa ou Kibamba?

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3901 Edição 15 de fevereiro de 2012

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COMENTÁRIOS SOBRE EDIÇÕES PASSADAS

Comentei dia desses o vídeo em que a Jane Fonda enaltece a velhice (a outra opção é a morte), descartando a entropia da segunda lei da termodinâmica, ou seja, a queda depois do “auge” e o CAT – Carlos Alberto Torres – reagiu com indignação. Ele não estava irritado com os argumentos apresentados e sim, com a apresentadora.

Lembrou o xará do grande capitão do escrete brasileiro de 1970 que a Jane Fonda foi a Hanói, no momento mais crítico da Guerra do Vietnã e posou, num clima de festa, sentada num canhão de defesa antiaéreo dos inimigos dos americanos. Ela seria – escreveu – fuzilada como traidora em qualquer outro país.

Concordamos; por muito menos, ou seja, porque fornicaram com os alemães, na França ocupada, na Segunda Grande Guerra, as francesas tiveram os seus cabelos cortados no meio do escárnio popular. Quanto à Jane Fonda, continuou a exibir suas belas madeixas douradas nas telas do cinema.

Na época em que a atriz posou para as fotografias sentada nos canhões inimigos, ela era casada com um ativista político da esquerda, o senador Tom Hayden que, certamente, a influenciou.

É evidente que o governo Nixon, os conservadores e muitos veteranos de guerra, na época, quiseram vê-la enforcada nas tripas do marido. O apelido com que até hoje ela é tratada, “Hanói Jane”, demonstra que não é só o nosso amigo CAT que se lembra dessa grande batatada na biografia da filha de Henry Fonda.

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Depois de ler mais uma edição do Biscoito Molhado que recebeu de mim pelo Yahoo sobre os taxistas da cooperativa Metrô Táxi, Dieckmann colocou um asterisco num comentário do 017 – “a temperatura do congelador de uma geladeira é 0 (zero) grau” – e digitou:

“A água se torna sólida a 0 grau, mas a temperatura do congelador é -6º.

Mas onde o Dieckmann caprichou mesmo no asterisco foi no Biscoito Molhado que transcreveu diálogos do Sabadoido sobre as letras da Bossa Nova. Avesso a versos passionais, a temperamentos depressivos, ele escreveu, entre outras coisas:

“... Talvez isso possa ser debitado às gerações que não escutaram as músicas imediatamente anteriores à chegada da Bossa Nova. As letras eram densas, sobre corações dilacerados, abandonos hediondos, traições, ciúmes e outras deturpações da alma e da paixão. Quando a Bossa chegou com a praia, o rebolado, o barco, não foi só a alternância de tons dentro da música que veio como inovação, mas toda a referência. Os temas largaram as agruras da alma e buscaram objetos, adjetivos e locações que combinassem com a leveza que se propunha musicalmente.”

“Interessante que Chega de Saudade é, ao mesmo tempo, uma letra inovadora e um basta nos trituradores da alegria, desde o título até os beijinhos, peixinhos e abraços.” - concluiu.

Dieckmann não se aprofundou nas origens da Bossa Nova para ser convincente na sua argumentação. A Bossa Nova, além de ter recebido influência do impressionismo de Debussy, na harmonia, principalmente em “Chovendo na Roseira”, de Tom Jobim, foi marcada por duas vertentes do jazz, o cool jazz e o bebop. Vinícius de Moraes quando recebeu de Tom Jobim a música de Chega de Saudade para colocar letra, já carregava uma apreciável bagagem de quem conviveu com os mais celebrados jazzistas americanos na época em que foi vice-cônsul do Brasil em Los Angeles.

Com aquela música do seu parceiro nos ouvidos, Chega de Saudade, ele logo sentiu que ali cabia uma letra cool (calma, despojada, descompromissada, na falta de melhor tradução). Enfim, o gênero musical que surgia não se ajustava aos “trituradores da alegria”, como o Dieckmann tratou os letristas passionais.

A Bossa Nova alcançou sucesso nos Estados Unidos, no Japão, mas, no Brasil, ao completar os 50 anos de existência, não mostra o mesmo vigor do Choro, que tem mais de 150 anos e do centenário Samba. Como já escreveram (o João Máximo foi um deles) a Bossa Nova se esgotou, deixou de ser um gênero musical para se tornar um repertório, as composições são as mesmas, não há renovação.

O brasileiro é latino, como o argentino, que gosta de tango; o mexicano, que gosta de bolero; o italiano que gosta das óperas. Nosso temperamento necessita não só de músicas alegres como também daquelas prenhes de paixão para se sentir satisfeito. O ser humano, enfim, precisa de músicas tristes para sublimar seus sofrimentos. (*)

Dito isso, vou escutar agora “Vingança” de Lupicínio Rodrigues para, depois, prosseguir na redação deste Biscoito Molhado.

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Meu amigo Elio (como diz o Luca) escreveu penalizado porque eu não incluí o Kikoisa e o Kibamba na edição sobre as minhas reminiscências infanto-juvenis. E acrescentou: “... Kikoisa era uma pequena barra, endurecida por fora, mas mole por dentro, revestida de chocolate escuro, com chantilly branco por dentro, que vinha envolvida em um papel meio seda, pintado de prata, marrom e verde e era vendido nos carrinhos da Kibon, junto com os sorvetes. Era primo-irmão do Kibamba, também de chocolate por fora, mas o chantilly por dentro era misturado com chocolate, daí a cor amarronzada que ganhava.”

Eu não escrevi porque, infelizmente, o Kikoisa e o Kibamba não estavam no meu cardápio, talvez estourassem o orçamento dos meus pais que tinham quatro filhos adoradores de sorvetes.

Como citei o Grapete, perguntou-me o Elio de que era feito. Bem, na época, eu só sabia que quem bebe Grapete, repete; não só bebia, como sentia a força dessa rima (ou será bebida? ). Lembra o nosso amigo que, apesar da crença geral, o Grapete não era de uva e sim, de framboesa.

No Sabadoido, o Luca, de maneira menos direta do que o nosso amigo Elio, se referiu ao “rabo quente”.

O “rabo quente”, um rádio que trabalhava com corrente contínua e alternada, chegou ao Brasil no fim dos anos 40 e durante muitos anos prevaleceu nos nossos lares. Como nunca ouvi, lá em casa, alguém chamar o rádio por esse apelido, não cuidei dele nas minhas recordações.

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Sobre o diagnóstico do meu sobrinho Daniel da perda da sua fluência em inglês devido à falta dos alemães para dialogar nos Correios, conforme registro de um Sabadoido, Dieckmann redigiu o seguinte asterisco:

“Há uma razão para cariocas e alemães se entenderem bem em Inglês (isto não vale para paulistas): a pronúncia do Alemão e do Português é muito assemelhada, praticamente se fala tudo como se lê – exceção para ei, eu e outras pequenas diferenças. Além disso, cariocas tem um erre gutural que cai bem com alemães e holandeses e que os faz sentirem-se em casa, mas que faz a diferença entre os nativos da língua inglesa. Já paulistas, mineiros e outros interioranos falam door igualzinho aos ingleses.”

E terminamos por aqui.

(*) É uma visão limitada. O ser humano pode resolver seus problemas sem músicas tristes. Isso não invalida a beleza das músicas, sejam tristes ou não. O que o Dieckmann procurou mostrar – como confidenciou ao Distribuidor do seu O BISCOITO MOLHADO – foi que a chegada da Bossa Nova interrompeu um ciclo de lamentos, muitos dos quais de baixa qualidade.

O que mata é a baixa qualidade, seja no lamento, seja na Bossa Nova e que, por isso, virou um repertório. Isso foi bom lembrar. Bach também é um repertório, nunca mais se renovou.

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

2100 - gorjetas congeladas

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3900 Data: 11 de fevereiro de 2012

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TÁXI...

Desci as rampas da estação do metrô de Maria da Graça pensando no antigo craque do Botafogo Nilton Santos que dizia, sobre os jogos às 15h 30min, no Maracanã, que aproveitava a sombra da marquise do estádio que caía sobre o gramado e que só saía para o sol quando o adversário vinha com a bola dominada.

-Pelo menos, há sombra nessas rampas.- sussurrei, enquanto o táxi do 017 me esperava de portas abertas.

-Que calor! - desabafei antes de sentir a maciez do banco do carona.

-Nem fala.

-Aqui, esta quentura, e lá em cima, no hemisfério norte, um frio de congelar até a alma. - comentei.

-Rapaz, está fazendo 47 graus abaixo de zero na Rússia. - mostrou-se embasbacado.

-Ouvi hoje, na Rádio CBN, durante minhas caminhadas, que em alguns lugares elevados da Suíça a temperatura atinge a 40 graus negativos.

-Mas na Rússia são 47 graus negativos.

Sem entrar na Rússia, fui ao Japão. O inverno japonês também é rigorosíssimo. Muitos nipônicos, ao retirarem a neve do telhado, escorregaram e morreram, sem falar naqueles que se foram por causa do frio mesmo.

-Não se vive com 47 graus abaixo de zero. - interrompeu-me com sua ideia recorrente.

-A Sibéria é maior do que o Brasil e muita gente vive lá. Não digo que toda essa região é habitada, que não é, mas a realidade lá, durante 365 dias do ano, não derrete. - manifestei-me.

-Você veja o congelador de uma geladeira, é zero grau (*). Imagine, agora, menos 47 graus. - insistiu.

Quase lhe disse que estava cansado de ver filmes, no cinema e na televisão, que mostram a retirada dos soldados de Napoleão de Moscou, em 1812.

-Certamente, não sai água da torneira e nem a descarga funciona com 47 graus abaixo de zero.

-Um amigo meu conhece uma senhora que passou inúmeras temporadas em Bruxelas, na Bélgica. Ela afirmou que não há nada melhor do que ouvir certas músicas com a neve caindo lá fora.

-Ela disse isso porque em Bruxelas não faz 47 graus abaixo de zero. - enfatizou.

Quando saltei do táxi, na Rua Modigliani, pensava nesse diálogo:

-Deu, pelo menos, para esquecer este calor de 40 graus. - confortei-me.

No dia subsequente, mal entrei no táxi do Botafoguense e ele deu início a uma jeremiada sobre os gols perdidos pelo nosso time no clássico de domingo, no Engenhão. Sem paciência para o futebol, mudei e assunto.

-A viagem de metrô se tornou uma tortura; se eu tivesse de trabalhar mais 5 anos no Centro, me mudaria para a Lapa.

-A Lapa melhorou muito.

-Lapa, precisamente, Rua do Riachuelo... Lá, moraram José do Patrocínio, Di Cavalcanti, Villa Lobos, Heitor dos Prazeres, Pixinguinha, Donga, João Pernambuco, Francisco Alves...

-Só gente boa. - entusiasmou-se o Botafoguense com seu jeito bonachão.

-Lá, também habitou a Capitu; nessa época, a rua se chamava Matacavalos, mas com a Guerra do Paraguai mudou o nome para Riachuelo.

-Por tudo isso, você escolheria a Rua do Riachuelo para morar na Lapa.

-A razão principal é que o meu pai trabalhou no “Diário de Notícias”, que ficava nessa rua. Garoto, eu adorava ficar no jornal com ele. Meu pai, às vezes, levava trabalho para fazer em casa, eu corria para auxiliá-lo, mas ele me expulsava para longe: “Você atrapalha mais do que ajuda”.

Botafoguense soltou uma gargalhada com as palavras do meu pai reproduzidas por mim.

-Está explicado, então, o seu carinho pela Rua do Riachuelo. - diagnosticou.

-O escritor Pedro Nava tinha paixão, ele anotou na autobiografia o desejo que as suas cinzas fossem jogadas na esquina da Rua Riachuelo com a Gomes Freire.

-A esquina certamente lhe traz boas recordações. - deduziu.

-O lugar já entrara em decadência quando o meu pai trabalhou lá, o Diário de Notícias, do Orlando Dantas, também, depois da sua morte. O jornal não ressuscitou, mas a rua, sim.

-Toda a Lapa ressuscitou. - deu ênfase às suas palavras o Botafoguense.

-Eu li que os lançamentos imobiliários se esgotam no mesmo dia, praticamente. Uma moradora do Edifício Victor, ao ser entrevistada, informou que volta e meia aparece alguém perguntando se há apartamento para alugar. A reportagem que me passou pelos olhos diz que esse edifício foi construído na década de 30 por um espanhol que morria de amores pelos nazistas, por isso, incrustou no piso mosaicos com a suástica.

-A marca do Hitler?!...

Antes de eu responder, o Botafoguense gargalhou de estremecer as ilhargas e parou no segundo poste da Modigliani.

No dia seguinte, entrei no veículo daquele taxista que, à minha pergunta, no ano passado, sobre casos de dengue em Maria da Graça e adjacências, respondeu-me que já teve meningite. Dessa vez, resolvi não mexer com o mosquito e falei da dificuldade do povo se locomover de casa para o trabalho.

-E com este calor...

-Esta soalheira nos tortura ainda mais dentro dos vagões. - concordei e, em seguida, me referi à viagem de metrô que me levara ao seu táxi.

-Os passageiros comentavam, na composição onde eu estava, que o povo se revoltou e apedrejou um trem. O senhor sabe de alguma coisa.

-Sei; eu via o programa do Vagner Montes, na televisão, quando deram a notícia. O que provocou a parada dos trens foi o roubo de cabos elétricos.

Esse cara está tratando de um fato que ocorreu dois dias antes, no metrô e que eu senti na carne. - pensei, sem me manifestar.

-O transporte de trens ficou prejudicado durante toda a manhã. - acrescentou.

Soube, mais tarde, por outra fonte, naturalmente, que o trem da Supervia enguiçara e os populares, revoltado com o descaso das autoridades, deram início a um quebra-quebra na estação de Sampaio.

No segundo poste da Modigliani, apresentei uma nota de 10 reais para pagar a corrida de 7,10. Dizendo que estava sem nota alguma, agitou-se e saiu em busca de um recipiente de plástico onde se encontravam as moedas.

-Aqui está 1 real.- disse, depois de juntar uma pilha de 10 centavos com gestos ansiosos.

Com a mão trêmula, repetiu tudo de novo. Pretendia dizer-lhe que não estava com pressa, mas ele podia estar, por isso, continuei calado.

-Mais 1 real.- entregou-me mais uma pilha de 10 centavos.

-Faltam agora 90 centavos.

-Não, não falta nada; eu sempre dou 8 reais de Maria da Graça até aqui.

Saltei do seu táxi, enquanto ele agradecia.

Quem me vir com tantas moedas, vai dizer que a minha receita do dia no sinal de trânsito foi boa. - calculei.

(*) A água se torna sólida a 0ºC, mas a temperatura média dos congeladores residenciais é -6 ºC.

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

2099 - fonética diferenciada

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3899 Data: 09 de fevereiro de 2012

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SABADOIDO MUSICAL

PARTE II

Abri a minha caixa de correspondência, no computador e me deparei com quase vinte e-mails relacionados a uma foto da Avenida Atlântica de 1957 com banhistas e, o mais importante para os remetentes, carros, quatro ou cinco. Uma questão foi proposta de início: quais as marcas dos automóveis que posaram para a prosperidade? Quanto às marcas, não restaram dúvidas, pois a turma do Dieckmann está apta a responder sobre veículos no “Céu é o limite”. Um parêntese, já que citamos o antigo programa televisivo de perguntas e citamos o holandês voador: “dizem que, quando jovem, Dieckmann tinha o pé direito tão pesado, ao dirigir, que o céu era mesmo o limite”.

Confesso que não li todas as respostas e comentários, pois o automobilismo não é minha praia, apesar da Avenida Atlântica, mas vi que um deles discordou do ano da foto, seria anos 40 e não, 1957.

Passei para outra mensagem eletrônica, seu título: “Não compre esse GPS”. Cliquei no vídeo e surgiu um motorista, dirigindo numa rua, enquanto uma voz feminina vinda de um GPS o instruía: “Entre a esquerda, seu imbecil. Por aí não, seu idiota?...”

-Isso é GPS ou é a sogra do motorista no banco de trás do carro?

Ao fazer-me esta pergunta, o Daniel e a Kiara entraram na minha Lan House, ou seja, no quarto.

-Daniel, veja este vídeo. - e cliquei no replay.

-Carlinhos, isto é sacanagem. - manifestou-se prontamente a Kiara.

-Se vendessem GPS igual a esse, eu compraria um para dar de presente. - comentou o Daniel.

-Kiara, antes de eu liberar o computador, tenho de enviar um e-mail.

-Sim, Carlinhos... Não tem pressa.

Enquanto eu esclarecia a um colega de trabalho que determinada frase era da autoria do Barão de Itararé e não uma das Leis de Murphy, a neta do Luca informava que o seu tio Benjamim aparecera no Globo Rural. Daniel reagiu com uma gargalhada e a menina ficou ressabiada. Ele teve de se explicar. Em seguida, ela apresentou outra novidade.

-Vou começar a fazer um curso de inglês.

-Don’t you think that your English is good enough to go to Barra da Tijuca?...

Depois dessa pergunta, Daniel prosseguiu com mais duas frases em inglês, titubeou, perdeu a fluência, e concluiu:

-Minha saída dos Correios enferrujou o meu inglês.

-Não há mais os turistas para atender?- indaguei.

-Principalmente, os alemães, eles são muito alegres e adoram conversar...

-Eles adoram conversar na língua da Margareth Thatcher. (*) - interrompi.

Avisei, em seguida, a Kiara que o computador estava liberado para os joguinhos dela e fui à sessão do Sabadoido onde já se achavam o Cláudio, o Luca e o Vagner.

-Ninguém interpretava Free Again com a carga passional da cozinheira da Dona Nonô. - lembrava o Luca.

-Ela superava a Barbra Streisand. - cheguei dentro do espírito da brincadeira.

-No momento em que ela cantava but, free again, ela socava ainda com mais força a carne para amolecê-la. - prosseguiu nas reminiscências dos anos 70 da rua Chaves Pinheiro o Luca.

-Cláudio cantando Alone Again do Gilbert O' Sullivan também emocionava. - recordaram.

-Era o meu cavalo de batalha daquela época. - admitiu meu irmão.

-Ninguém cantava como o Careca “Debaixo dos caracóis dos seus cabelos.” - falei.

-O Careca morreu.

-Há algum tempo.

-Faz uns anos...

Ouvindo essas frases dos meus três interlocutores, reagi com tristeza:

-O Careca, irmão da Cristina, filho do Zorro, que era garoto quando éramos rapazes?

-Ele mesmo. - confirmaram a má notícia.

Feitos do Careca saíram imediatamente debaixo das cinzas da minha memória.

-Lembra-se, Cláudio, quando o Careca lhe fez companhia, no ponto, e quando você entrou no ônibus, que estava cheio, ele gritou com um passageiro levantar-se para lhe dar o lugar?

-Eu ri sozinho durante uma boa parte da viagem. - disse.

-O Careca não viajou nesse ônibus? - quis saber o Vagner.

-Não, ele esmurrou, do lado de fora, a carroçaria do ônibus, e quando o passageiro, sentado, olhou pela janela, levou esse esporro do Careca. - explicou.

Luca puxou um dos recortes de jornal que trouxera, um artigo do Ruy Castro e leu que o centenário do Nélson Rodrigues será apoteótico.

-Nem tudo está perdido. - pensei sem me manifestar.

-Nélson Rodrigues falava que seria esquecido.

E acrescentou com uma frase do dramaturgo:

-O morto só descansa realmente em paz quando é esquecido.

Em seguida, reproduziu parágrafos do autor do “Anjo Pornográfico” sobre os eventos que estavam agendados para os 100 anos do Nélson Rodrigues.

-Ele é um dos autores mais citados pelo Carlinhos.

Caramba, eu nem tentei expressar o meu encantamento quando me deparei com as suas crônicas esportivas, quando adolescente. Anos depois, o deslumbramento prosseguiu com as suas “Confissões” e, já adulto, com os seus textos da tragédia carioca para o teatro.

-Nélson Rodrigues morreu com 68 anos de idade, em 1980.

-Novo – interrompeu-se o Luca, que se aproxima dessa idade.

-A tuberculose o golpeou fortemente deixando sequelas por toda a sua vida. - pensei.

-A fala do Nélson era arrastada, elástica, bovina. Apesar da idade, morreu velhíssimo. - leu e comentou o Luca.

-Hoje, com 68 anos, canta-se rock, anda-se de motocicleta... - foi a vez do Cláudio interromper sob o olhar de aprovação do Vagner.

Luca passou a falar sobre seu encontro com um Paulinho que é conhecido por todos ali, da sessão do Sabadoido, menos por mim.

-Pelo que ouço de vocês, é uma figura folclórica.

-Carlinhos, você precisa conhecer o sujeito. - aconselhou o Vagner com mordacidade.

-Ele gosta mais do Chico Buarque do que eu. - admitiu o Luca, que não deixava ninguém lhe tomar a palavra como um jogador individualista que não passa a bola.

-Ele diz que escuta todos os músicos de jazz e que nenhum deles supera o Chico. E ele escuta mesmo jazz, pois herdou os discos do pai. Na música popular, de que país for, ainda não apareceu quem compusesse como o Chico, é o que o Paulinho garante.

-Ele é doido. - protestou o Cláudio.

-Eu falei com o Paulinho que nós fechamos com o Chico, mas para ele não bobear com o Claudiomiro, que é “piranho” velho em matéria de música. - disse o Luca.

-Esse tal de Paulinho deve ser uma pessoa que adquiriu muito conhecimento sem que o seu cérebro estivesse capacitado a processá-lo, por isso, fala disparates e é visto como uma pessoa folclórica pelos amigos. - julguei, sem nada falar.

-Kiara, hora de ir embora. - gritou o seu avô depois que percebeu que já passava das doze horas.

(*) Há uma razão para cariocas e alemães se entenderem bem em Inglês (isto não vale para paulistas): A pronúncia do Alemão e do Português é muito assemelhada, praticamente se fala tudo como se lê – exceção para ei, eu e outras pequenas diferenças. Além disso, cariocas tem um erre gutural que cai bem com alemães e holandeses e que os faz sentirem-se em casa, mas que faz a diferença entre os nativos de língua inglesa. Já paulistas, mineiros e outros interioranos falam door igualzinho aos ingleses.

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

2098 - música e letra

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O BISCOITO MOLHADO

Edição 3898 Data: 5 de fevereiro de 2012

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SABADOIDO MUSICAL

Dei pela falta do Daniel, quando cheguei para mais um Sabadoido, e meu irmão me informou que ele estava compondo.

-Villa Lobos, seriamente doente, respondeu a uma repórter que estava decompondo, quando esta lhe perguntou sobre a sua próxima composição. - pensei sem me manifestar.

-E a minissérie os Kennedy, Carlinhos?

-Ela mostra, agora, a crise em Berlim Oriental que originou o erguimento do muro. O presidente Kennedy, com a equipe dele, assiste a filmes que mostram os berlinenses fugindo para o lado ocidental. Os assessores que não enxergavam um palmo além do nariz aconselharam a intervenção americana, mas os mais lúcidos perceberam logo que a melhor coisa a fazer era divulgar para o mundo esses registros; assim, todos veriam o quanto é horrível viver no mundo comunista.

-Era uma guerra de propaganda. - interveio o Cláudio.

-Muitos não viram, como dizia o Nélson Rodrigues, o óbvio ululante: o fracasso do regime comunista.

-Em novembro de 1989, os próprios alemães derrubaram o muro. - disse.

-E o maestro Leonard Bernstein foi lá, no mês seguinte, no Natal, reger a Nona Sinfonia de Beethoven, com televisionamento para vinte países. Falando nele, era grande amigo da primeira dama Jacqueline Kennedy a ponto de telefonar para a Casa Branca e convidá-la para um concerto. Ela ia.

-E o John Kennedy?

-Culturalmente falando, ele estava aquém dela. Jacqueline Kennedy falava francês e espanhol e foi nesta língua que discursou quando esteve na América Latina. O John Kennedy, quando a acompanhava aos concertos sinfônicos, não se sentia à vontade. Há uma cena, nessa minissérie, em que a Jacqueline Kennedy promove um recital de piano, com um aclamado concertista, com a presença de vários milionários que estavam contribuindo com uma dinheirama para um projeto cultural. No meio do evento, John Kennedy sumiu: foi para o retiro dele, uma sala de cinema, onde assiste a um trecho de “Spartacus” de Stanley Kubrick e depois fornica com uma das convidadas.

-Voltou a tempo das despedidas dos doadores do evento cultural?

-Voltou nada, Cláudio, a pobre da Jacqueline Kennedy teve de se virar sozinha.

-Bem, ainda não dei alpiste para as rolinhas. - foi a justificativa que deu para ir da cozinha ao quintal da casa.

Sozinho, peguei o Globo para ler algumas páginas até a chegada do Daniel, que não demorou muito.

-Já compôs a sua sinfonia?

-O que é isso, Carlão; são músicas de três minutos.

-Você sabe por que Robert Mitchum decidiu ser ator? - perguntei.

-Não.

-Por causa do Rin-tin-tin. Ele disse: “Se um cachorro pode, eu também posso.” Partindo desse pressuposto, se tanta gente por aí pode compor, eu também posso. (não pretendia ser indelicado e coloquei o verbo na primeira pessoa).

-Poxa, Carlão, assim você não me incentiva.

-Desculpe-me, Daniel, eu não queria perder a piada.

Depois de uma curta pausa, retomei o assunto:

-Você não está justapondo acordes sobre acordes?...

-Como assim?

-Você tem de criar uma melodia, uma sequência de notas que agrade os ouvidos; é a parte A. Depois, você faz a mesma coisa para a parte B; em seguida, a parte A é repetida. Não esquecendo o refrão se o caso for apelo popular. Temos de sentir que há uma integração entre as partes. Bem, você que estudou teclado sabe isso, tecnicamente, melhor do que eu. Meu conhecimento de música é de diletante.

-Só estudando horas e horas por dia, para se conhecer música, Carlão.

-Eu não preciso ser entendido para saber que Paul McCartney, ao compor “Admiral Halsey”, se perdeu...

Daniel me atropelou:

-Ele se perdeu no meio do “Admiral Halsey” e saiu outra música. O John Lennon esculhambou o Paul McCartney por isso....

-Lá no meu trabalho, Daniel, criaram no ano passado um bloco carnavalesco e o compositor é um concursado, um rapaz do nordeste que tem mais ou menos a sua idade. O conhecimento dele de música é nulo. Para o carnaval deste ano, ele escreveu uma letra sobre os bueiros que explodem no Rio de Janeiro e depois me deu para ler. Li aquele negócio engraçadinho e me perguntei completamente cético: como ele vai musicar isso?

-Ele parte da letra para a música?

Depois de responder que, provavelmente meu colega já tinha uma melodia na cabeça ao escrever a letra, prossegui:

-Então, ele pegou o papel da minha mão, onde a letra estava impressa, e começou a cantar. As sílabas se transformavam em notas musicais; ele fazia pausas para obter o ritmo e, em seguida, criou um refrão. Resumindo: aquilo não agredia os ouvidos, era cantável, cantabile, como se diz em música. Depois de pouco tempo, o bloco tinha uma marcha razoável para cantar neste carnaval.

-Mas, Carlão, 95% dos músicos populares compõem mais ou menos dessa maneira.

-Eu sei. Por que um dos primeiros trabalhos do Tom Jobim foi colocar nos pentagramas os grandes sucessos da música popular brasileiro? Porque quase todo o mundo compõe de ouvido.

-Como muita gente, também, só toca de ouvido.

-Certa vez, Daniel, o Sinhô tocava no piano, a pedido do público, várias composições, principalmente as suas. Então, uma senhora lhe entregou a partitura do Rêverie de Jules Massenet e lhe solicitou que a tocasse. Aquilo era grego para o Sinhô, mas ele não perdeu a pose. Devolveu-lhe a partitura, dizendo:

-”Não me dou com o compositor.”

-É verdade. - limitou-se o Daniel a dizer.

-Existe um mistério para os musicólogos: por que algumas melodias nos obcecam, e outras, não? Normalmente, essas melodias que são criadas da maneira que falei, intuitivamente, agradam, mas logo enjoam.

-Isso é relativo, Carlão.

-Tem razão, Daniel. É como o vinho, quem tem o paladar apurado pelas melhores safras francesas não vai apreciar as bebidas das vinícolas mais modestas.

-Mas que existe musiquinha vagabunda que entra na nossa mente e custa a sair, Carlão, existe. É como certas expressões.

-Isso me reporta ao artigo de ontem, no Globo, do Zuenir Ventura. Falava ele sobre um bordão que se propagou pela internet, para em seguida corrigir para meme. E disse ele que meme é um termo lançado pelo escritor Richard Dawkins no livro “O gene egoísta”. Afirma o autor inglês que o meme é capaz de se replicar, passar de uma mente para outra e se disseminar de maneira viral.

-E a que meme o Zuenir Ventura se referiu, especificamente, porque há muitos por aí.

-”Menos a Luiza, que está no Canadá.”

-Este até que não incomoda tanto.

-Nas campanhas políticas, recorre-se muito a esse tipo de vírus. - assinalei.

“Este cara é bom”. - citou o meme do César Maia.

Nesse instante, meu irmão retornou à cozinha.