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quarta-feira, 19 de março de 2025

3164 - Tão moderno...

 
O BISCOITO MOLHADO


Volume SV                    Data: 29 de outubro de 2004

 


OS ROOSEVELTS

Allen Churchill, no seu livro sobre os Roosevelts, cita uma frase do eminente historiador da política americana, Richard Hofstadter, que destacou o temperamento do presidente como a peça principal na luta   contra a grande depressão:


-"No âmago do New Deal não estava uma filosofia, e sim um

temperamento."

E o historiador assim conclui o seu raciocínio:

-"A essência desse temperamento era a confiança do presidente,

mesmo consciente do terreno desconhecido em que se encontrava, que não erraria."

Allen Churchill, depois dessa citação, escreve que estava arraigada na personalidade de Franklin Delano Roosevelt uma ansiedade que o fazia encarar cada problema da vida como uma novidade e um estímulo. Era uma qualidade efervescente de otimismo que levava muitos a sentirem que Roosevelt, embora escarmentado pela doença, jamais deixaria de ser jovial.


-"Até o fim dos seus dias, ele era vivo como um menino." - cita     Allen Churchill um trecho redigido por John Gunther, um                     respeitado jornalista da época. A seguir, o biógrafo dos Roosevelts         acrescenta:


-"Nisso, naturalmente, ele se assemelhava ao seu primo, o ex-

presidente Theodore Roosevelt. Mas a despeito dos traços da

adolescência, Franklin era maduro sob outros aspectos e                    Theodore não o era."


Uma das primeiras ações do presidente, em 1933, foi visitar o

influente juiz da Suprema Corte, Oliver Wendell Holmes Jr, que

estava doente. Este, pouco depois da visita, expressou a sua

impressão sobre o presidente recém-empossado:


"Um intelecto de segunda, mas um temperamento de primeira

classe."


Um temperamento de primeira classe seria imprescindível para o comando dos Estados Unidos no meio da maior crise que já atingira a economia capitalista; quanto ao intelecto de primeira, fazia-se mais necessário aos membros da equipe do presidente do que a ele próprio. E ele soube cercar-se de excelentes cérebros. Eis o que registram os historiadores:

Para o seu Gabinete, Franklin Delano Roosevelt escolheu vigorosos individualistas, como Harold Ickles, e este, com o seu estado-maior, consideraram-no sempre o Chefe, sabiam que ele estava sempre no comando. O presidente, na realidade, reuniu equipes de conselheiros que iam dos idealistas do Brain Trusters até os calejados políticos. E mesmo no meio de um turbilhão de opiniões, na maioria das vezes contraditórias, ele não se perturbava.


Sua cabeça até foi chamada, pelos mais íntimos, de papel apanha-mosca, porque ele considerava todos os conselhos, antes de depurá-los na hora de agir.


Grace Tully, aquela que foi a sua secretária por dezesseis anos (a sua amante fora outra secretária) lembrava que, por diversas vezes, sabendo que um ramo do governo se encontrava com um problema difícil, Franklin dizia:

"Mande-o para mim. Minhas costas são largas, e eu posso suportar a carga."


Esses anos todos de experiência ao seu lado levaram-na a declarar que Roosevelt possuía no mais elevado grau a vontade de assumir a principal responsabilidade pelos acontecimentos.


"Em Roosevelt, o ardor e o otimismo se misturaram a sua força interior, criando, assim, um desses homens excepcionais que gostavam de tomar decisões." - concluíram os historiadores.


Sempre foi explícito em Franklin Delano Roosevelt, bem mais do que em Theodore Roosevelt, o amor pela política. "O que mais lhe interessava era a alta política" – assinala Arthur Schlesinger - "não a política no sentido de intriga, mas de educação." A própria visita que fizera ao adoentado juiz, Oliver Wendell Holmes Jr, já fora um ato político: as medidas do New Deal chegariam à Suprema Corte.


Numa admirável análise sobre o seu marido, Eleanor concluiu que, misturado com o desejo de Franklin de fazer a vida mais feliz para as massas, estava o seu gosto pela mecânica da política, não como uma ciência apenas, mas como um jogo. E isso envolvia compreender as reações do público e a lidar com essa compreensão.


Ela também disse que Franklin se considerava um instrumento escolhido pelo povo e que, como tal,tinha a obrigação de esclarecê-lo e liderá-lo. Não havia problema, dizia ela, que o marido considerasse intransponível pelos seres humanos.


-"Eu nunca o vi encarar a vida, ou qualquer problema que surgisse, com medo." – escreveu.

Bem alto, na lista das virtudes de Franklin Delano Roosevelt, a sua esposa colocava o seu senso de humor que, no momento exato, permitia-lhe transformar o assunto mais sério num objeto de divertimento.


Na Convenção do Partido Democrata que o indicou a presidente pela primeira vez, vemos nos documentários o quanto se divertia com as piadas do humorista Will Rogers (1879-1935), que não abrandava o seu espírito com ninguém, basta olhar algumas das suas frases:

-"Invista em inflação; é a única coisa que continua subindo."

-"O imposto de renda produziu mais mentirosos do que jamais ousou sonhar o diabo."

-"Todo o mundo é ignorante, só que em assuntos diferentes."

-"Tudo é engraçado, desde que esteja acontecendo com outra pessoa."


Nos documentários que assistimos, Will Rogers brada, na Convenção Democrata de 1932, que tem a mente aberta, e por isso, anunciaria ali até mesmo Herbert Hoover, caso ele aparecesse. Quando finalmente anuncia o sorridente Franklin Delano Roosevelt, expressa a sua surpresa com o numero fantástico de pessoas que pagaram tão caro para ver um político.


Roosevelt, com o seu temperamento de primeira, sabia o quanto o humor era também necessário para derrotar aquela terrível crise, mesmo que fosse o humor cáustico de Will Rogers, que voltou a atacar nos seus primeiros dias de governo:

-"Não temos empregos, não temos dinheiro, não temos bancos, e se ele (Roosevelt) tivesse queimado o Capitólio, nós teríamos dito:


Graças a Deus que ele pôs fogo em alguma coisa."

domingo, 2 de fevereiro de 2025

3163 D - Leão da Baviera

O BISCOITO MOLHADO


Volume SV                    Data: 03 de fevereiro de 2025

 


RO-BER-TÓ


Conheci o Jorge Lettry em S. Lourenço. Ele assistiu a uma palestra que fiz no hotel durante o evento do Veteran Car de Minas Gerais. A palestra era sobre o automóvel no Rio de Janeiro - do Barão do Rio Branco ao tempo da internet - e consegui juntar muitas fotografias de 1900, com arrojados motoristas e seus artefatos mecânicos de então. 


Naturalmente, a identificação desses automóveis veteranos daquelas "rodovias" é muito difícil e entre as fotos escolhidas, havia duas que eu realmente não tinha nem pista do carro que poderia ser. Então sapequei, com a firmeza de alpinista em Pão de Açúcar molhado, que seriam o Unknown 1902 e depois, o Unknown 1909. Não abusei do uso dessa desconhecida marca e ninguém falou nada, aplaudiram o suficiente para eu ficar satisfeito e ir embora.


Na saída, o Jorge se apresentou e falou baixinho: "Unknown, é?". Caímos na gargalhada e ficamos amigos instantaneamente, o que, eu soube depois, não era nada corriqueiro com ele.


Patrão severo, chefe de equipe de competição da Vemag nos anos 60, impunha muita disciplina aos jovens pilotos, quase sempre garotos que davam o coração e o talento nas pistas, mas que certamente, detestavam obedecer ordens de quem quer que fosse.


Mas não eram só os pilotos que sofriam... mecânicos, chefes, entrava todo mundo pelo cano na presença de seus argumentos irrefutáveis e dados precisos, praticamente fatos. A lista é enorme, pois logo que chegou no Brasil foi para uma revenda Volkswagen, antes mesmo da fábrica se instalar em 1953. Quando começaram a acompanhar os resultados das oficinas, a alemãozada deu de cara com copiosos relatórios do Jorge. Aliás, ele não gostava nem um pouco de Fusca, metia o pau com vontade.


Naqueles tempos, os carros de competição iam para as corridas rodando, às vezes, 500, 600 km e cada piloto levava o carro que pilotaria em seguida. Consta que havia recomendações em relação à velocidade máxima, para que não se afastassem muito do caminhão da fábrica, onde ia o Jorge. A turma sumia na poeira...


Costumeiramente um pneu furava, ou quebrava um parabrisa; o Jorge passava insensível pelo infeliz, às vezes dava um tchau.


Eu sabia disso tudo, mas tinha a sombra do Unknown a meu favor e, no nosso papo, ele falou que tinha sítio, que fazia marzipã e mais isso e mais aquilo, naquela conversa de duas horas. Disse a ele que eu frequentava um restaurante do Rio que servia marzipã de própria fabricação, o Leão da Baviera, e o Lettry abriu um olhão. Como eu era presidente do Veteran carioca, eu o convidei para dar uma palestra e que no dia seguinte, eu o levaria para provar o tal marzipã.


A palestra foi um sucesso, gente saindo pelo ladrão na velha casa de Santa Teresa - para onde o clube se mudou após ser despejado do imóvel anterior sob falsas premissas, uma característica pessoal do presidente que me antecedeu. Eu fiquei feliz com a palestra, um sucesso que solidificou a claudicante nova sede e no dia seguinte, promessa mantida, lá fomos nós para o Leão da Baviera.

O Lettry me avisou que viria também um amigo, o Pessoa de Mello, ou Homem de Mello, não tenho certeza hoje, mas era uma pessoa e homem, além do Mello indiscutível. Entretanto, ele me avisou que a chegada do Mello estava atrasada e que não poderíamos almoçar no horário comum.


Não houve problema, pois o dono do Leão da Baviera era o Bertrand, um alemão super simpático que atendia os clientes com sua mulher de pele de seda, Márcia, a Mulata nº2, ou seja, vem aqui mais história.

O Bertrand começou o Leão com a primeira mulher, que não conheci, mas que devia ser igualmente atraente. Um dia tirou férias para visitar a mãe na Alemanha e, para não perder a auxiliar, levou-a junto. Chegando lá, o casal foi tomar chopp com os velhos amigos do Bertrand, que ficaram maravilhados, estonteados, e certamente esfomeados, com a visão da formosura em tom de chocolate amargo. Não tiravam o olho nem um segundo, e toda hora cumprimentavam o amigo pela sábia escolha de tão bela companheira. Foi tanto cumprimento que o Bertrand saiu-se com essa: - Ihhh, lá no Brasil tá cheio!


Foi o bastante, os amigos replicaram na hora - "Então deixa ela aqui". E assim chegamos na Mulata Nº2, pois a primeira ficou entre os germânicos. Passada esta importante evolução da administração do Leão da Baviera, voltemos ao almoço. Chegamos quase três da tarde, Bertrand nos recebeu com um sorriso naquele espaço que mais parecia um stand da BMW. Toalhas quadriculadas de azul e branco, sofás azul e branco, cortinas azul e branco... Estava completa a ambientação daquele encantador Leão da Baviera, paredes de madeira, cores nacionais, uma sequência de moças achocolatadas e um bávaro no fogão. Meus convidados se encaixaram muito bem no ambiente e começava uma longa e preguiçosa tarde, com um final feliz previsto para ser coroado por marzipã caseiro.


Porém, mal bebemos uma rodada das compridas cervejas de trigo, a porta se abriu e cinco japoneses entraram muito respeitosamente no salão, indagando se podiam comer. Bertrand abriu o sorriso de casa cheia às três da tarde e gesticulou amigavelmente para que entrassem. Os japoneses também se encaixaram perfeitamente no ambiente e o Lettry, de repente, parou dez segundos, estático, silencioso, um tanto fora do normal e disse: este é um momento histórico!

Não entendi nada e nem o Mello, que era conhecedor dos rompantes do mago dos DKW e petrificou um sorriso pela metade, nem sonhando no que poderia vir daí, porque ele sabia que algo viria, ah, isso viria. Lettry repetiu, este é um momento histórico, e ante a minha cara atônita, perguntou: teu nome não é Roberto? É, disse eu ainda tranquilo. Pois então, Ro-ber-to, Roma, eu, italiano, Berlim, você e o bávaro e Tóquio, a japonesada. Vou lá conversar com eles. Diante dessa situação pró-Eixo, eu também achei melhor me petrificar e ficamos eu e o Mello a uma distância segura de algum estilhaço que poderia vir nos atingir. Não sei se tinha intérprete, se eram nisseis, sei que em dois minutos o Lettry estava sentado com eles, todos rindo de se acabar, de vez em quando apontando para mim, da história eu era o Berlim e também do Roberto o estopim. E o marzipã? Nem lembro.

sexta-feira, 3 de janeiro de 2025

3162 D - Muito antes da tartaruga ninja

O BISCOITO MOLHADO


Volume SV                    Data: 03 de janeiro de 2025

 


SANGUE E LARANJA




1) O TEMPO:
A história toda leva - na pequena parte que me coube - uns quinze minutos, no máximo. Houve um tempo de planejamento, que hoje eu não saberia precisar, mas a ação foi de quinze minutos, e uma baita ação.

2) O TEMPO:
Era chuvoso, aquela mini chuva, típica do inverno, com certeza era no inverno do Rio de Janeiro, pois foi usada uma japona tipo marinha, uma moda que andou em voga, mesmo quando o frio não era intenso. Muita gente suava dentro daquelas japonas de lã dupla, mas mantinha a pose. Não me lembro de suar naquela noite, talvez um pouco nas mãos, que não era de calor.
A japona e um boné me protegiam tanto da leve precipitação, quanto da curiosidade alheia.

3) O TEMPO:
O espírito do tempo, ou da oportunidade. A reação precisa ser sentida como consequência, não pode ser deixada para dois meses depois.

4) AS VÍTIMAS:
Eram duas tartarugas de grande porte, embora uma um pouco menor do que a outra. Talvez fossem mãe e filha, o que agravou o crime perpetrado, assassinato em presença de menores.
A espécie Podocnemis expansa é sujeita à proteção do Programa Quelônios da Amazônia (PQA) e elas não poderiam ser abatidas - fica determinado que eram mãe e filha - para consumo humano.

5) PREÂMBULO DO CRIME:
Assisti à chegada das imensas tartarugas, que passeavam pela ensolarada área de serviço do apartamento S-104, imediatamente abaixo do meu; eu tinha uma vista privilegiada dos animais, que constituíam um jardim zoológico exótico e inédito. Pareciam felizes, lentamente se movimentando em busca de alfaces e outros vegetais, gentilmente fornecidos pelas sobrinhas do coronel amazonense, chamado Osíris.
Segundo más línguas, que incluíam a da minha mãe, não eram sobrinhas coisa nenhuma e sim concubinas do adiposo e bigodudo coronel que alimentava o harém, bem como as tartarugas.
Realmente, essas sobrinhas tinham um comportamento estranho, mas eram elas que alimentavam as tartarugas e eu ficava feliz.
Duas ou três semanas durou a minha alegria.

4) O CRIME:
O assassinato ocorreu em um fim de semana qualquer, executado por um profissional munido de uma machadinha. Foi horroroso demais para descrever em páginas que podem ser lidas por pessoas sensíveis à visão do sangue, que jorrava folgadamente de cada uma das inúmeras incisões machadianas.
Não havia barulho audível, talvez elas fossem mudas, ou talvez a primeira machadada tenha sido em suas cordas vocais, mas me foi impossível parar de sentir os golpes sucessivos daquele cirurgião de açougue. Foi tudo muito doloroso.
Viradas de casco para baixo, levaram muito tempo para chegar ao último suspiro e deixaram a área cimentada colorida por um vermelho amazônico.
Enfim, passado um bom tempo - talvez duas horas - os cascos foram separados das carnes e tudo desapareceu da minha observação.

5) A FESTA:
Não fui convidado para o longo almoço que durou toda uma tarde. Não sei se comeram tudo, mas lembro do cheiro, pouco atraente para quem está acostumado a churrasco, vatapá ou bouillabaisse - estes são os meus pratos preferidos - e acho que eu não ficaria freguês. Se bem me lembro, um fogo foi aceso sob o casco maior, para dar a sensação olfativa autêntica e o fato é que osso queimado tem cheiro ruim.

6) VINGANÇA:
Na minha cabeça, isso não poderia ficar barato. Algo precisava acontecer, se fosse possível, em hora do exercício do concubinato.
Lembrei que as vidraças da sala dos apartamentos eram bem grandes, quatro vidros de quase um metro por um metro. Imaginei uma pedra partindo as vidraças, ou uma só que fosse, que barulho fenomenal faria naquela paz noturna da Santa Teresa adormecida. Sim, uma janela quebrada numa noite fria, abrindo caminho para um vento gelado da madrugada, seria a vingança.

7) PROJETO:
Eu não tinha pedras em casa, olhei tudo em volta e achei laranjas. Laranja Lima, a única que entrava lá em casa. Selecionei duas maiores, enfiei na japona e saí, aproveitando alguma visita que os demais ocupantes da casa faziam enquanto eu estudava Geometria.
Apesar de ter meu quarto, eu só estudava na sala de jantar, onde a mesa era grande e facilitava muito ao meu pai verificar meus erros, ou os raros acertos.
A casa das finadas tartarugas era exatamente igual, as mesmas janelas, só um andar abaixo.

8) AÇÃO:
Saí com a japona, as laranjas e o boné. Talvez passasse das nove horas, não tinha ninguém na rua do bonde, a Mauá, menos ainda na Teresina, a rua debaixo. O poste de luz ficava em frente ao muro do meu prédio, iluminando a fachada e as tais janelas, enquanto que qualquer atirador de laranjas noturno ficaria com o rosto sombreado. Para facilitar um pouco mais, havia alguns carros estacionados na rua, que estavam no conserto da oficina do Pinho. Estes carros traziam mais sombra ao cenário, permitindo anonimato total a um franco-atirador de laranjas. 
Já estando na rua e com uma laranja na mão, a ação estava pronta.

9) A MIRA:
Encostei no poste e olhei a situação, tudo absolutamente calmo e igual ao minuto anterior e aos dois minutos anteriores - nada acontecia, apenas um leve suor marejava entre meus dedos e a laranja.
Dei um passo à frente e armei a posição de lançamento de laranja, parecida com a do arremesso olímpico de disco. O ângulo de tiro era tranquilo, bastava ultrapassar o muro do prédio em linha reta e a janela seria atingida.
Lancei a laranja e por um, dois segundos, observei, curioso e satisfeito, a sua trajetória. A fruta ultrapassou o muro em linha ascendente e, diferentemente de todo o projeto, continuou subindo, entrando pela vidraça da minha casa.
Cheguei a pensar em arremessar a segunda laranja, mas, em vista do primeiro fiasco e sem ter crença em que alguma coisa pudesse sair diferente da primeira tentativa, abortei tudo e voltei para casa com a laranja remanescente.

10) O ESTUDO:
Cheguei na mesa e limpei parte dos mil estilhaços do vidro. A laranja também estava lá, em bom estado, de modo que deixei a fruteira exatamente como estava antes de sair.
O frio era intenso, mas eu já estava de japona e então sentei devidamente agasalhado na cadeira habitual e recomecei a estudar os ângulos e paralelas que faziam da Geometria a minha matéria preferida. 

11) CAUSAS E CONSEQUÊNCIAS:
Não demorou muito e chegou o povo de casa. Olharam a situação, perguntaram se eu havia me machucado - o que me sensibilizou muito - mas eu expliquei que, no momento da quebra do vidro, eu estava fora da sala, nada tinha visto, nada sabia, uma meia verdade que guardei por mais uns 30 anos. Meu pai olhou aquilo e concluiu que era vingança de alguém que fora prejudicado por mim, afinal eu e os meus morteiros, etc etc.

De vez em quando eu contava essa história para amigos, mas jamais para parentes. Mas justamente meu colega de turma Gustavo Frota passou a beber uma cerveja comigo e com meu pai e um dia relatou o fato... "seu Waldemar, a história da vidraça quebrada pelo morador que estudava" e por aí foi relatando tudo.

Meu pai dobrava de tanto rir. Gustavo, idem. Foi bom proporcionar essa alegria aos dois.

quinta-feira, 7 de novembro de 2024

3161 - As mais antigas profissões do mundo


O BISCOITO MOLHADO


Volume 2085                    Data: 31 de maio de 2004

 



HISTÓRIAS PARA SEREM CONTADAS


Confundi filho com pai e escrevi que o Sérgio Fortes estudou no Colégio São Bento, e quem na verdade lá estudou foi o barítono Paulo Fortes. Para o Dieckmann, que não nos alertou para o erro, não faz muita diferença a troca de escolas, pois as alunas do Instituto de Educação, atraídas pelos alunos do Colégio Militar, preferiam futuros militares a futuros padres. Sérgio Fortes foi do Santo Inácio, onde pertenciam à mesma turma o matemático Oswald de Sousa e o prefeito, também íntimo dos números, César Maia.  Para o público, Oswald de Sousa era o entendido na quantidade de acertadores da loteria esportiva, quanto ao César Maia, já possuía um talento bem mais diversificado: criador de factóides, varredor da Marquês de Sapucaí, maluco, tocador de obras, Pigmalião que tem como Galatéia o Luís Paulo Conde, e não uma vendedora de flores. 

O atual prefeito, porém, conhecia os números e, segundo a reportagem de um co-irmão de O Biscoito Molhado,  precisamente O Globo, disputava com Oswald de Sousa o título de melhor aluno de matemática da turma. Eram mestres, principalmente, em análises combinatórias, resolvendo com os pés nas costas aqueles problemas apresentados nos livros do Ary Quintela e do Jairo Bezerra. Nessa parte da disciplina, Oswald de Sousa se destacava nas combinações, e César Maia nos arranjos – o que explica o seu destino na política.

Contudo, o mais afamado NERD, CDF, ou o nome que for, da história do Colégio Santo Inácio, não foi o Sérgio Fortes, o César Maia ou o Oswald de Sousa, e sim o Mário Henrique Simonsen; também por causa da intimidade com os números. Depois que ele chegava do almoço, a sua secretária tinha ordens categóricas de não deixar ninguém sequer respirar perto da porta do chefe; pois Simonsen, com lápis e papel na mão, relaxava os nervos resolvendo intrincados problemas de matemática.  Depois, passou para o jogo de xadrez, mas mestre também em análise combinatória, sabia que depois de poucas mexidas nas peças, abria-se um leque de opções de jogadas que passava do milhão, o que lhe exigiria muito tempo, e ele ainda tinha de se dedicar ao tabuleiro da economia, onde qualquer jogada ou movimentação das peças provocava uma corrida dos jornalistas à procura do seu parecer técnico.

Mário Henrique Simonsen dedicou-se, então, com mais fervor à música. Nós víamos, então, o ex-ministro da Economia do governo Geisel e do Planejamento no início do governo Figueiredo, também nas páginas dedicadas à cultura, na revista Veja, redigindo requintadas críticas a discos de óperas e a orquestras como as regidas por Hebert Von Karajan, e a presidir até Concurso Internacional de Canto com nomes conceituados. Nada mais lógico para um amante dos números, pois a música é a forma mais adiantada da matemática. Pitágoras já reduzira o acorde musical a uma proporção matemática, chegando, dessa maneira, à idéia que os números são o princípio, a fonte a raiz de todas as coisas. Como diria o Dieckmann, expoente em Latim, no Colégio Militar, na época em que vigia a Lei Gustavo Capanema, pois retiraram o Latim do currículo escolar em 1962: “Numeri regunt mundi” (Os números regem o mundo).

Na biografia do Paulo Fortes, Rogério Barbosa Lima cita na “Nota do Autor” o pensamento de um outro filósofo, Leibniz: “A música é uma álgebra sentida”. E, logo depois, reporta-se `a justificativa do poeta e teatrólogo inglês, W.H. Auden,  para as incongruências dos enredos das óperas: “As pessoas não cantam quando não se sentem sensatas”. 

Ainda com as vistas voltadas para a biografia do grande barítono brasileiro, não posso deixar de assinalar que os leitores não fruíram no Capítulo III, “Crônicas dos Bastidores”, de uma história que nos foi narrada pelo Sérgio Forte no seu célebre (por ser o único, talvez) correio eletrônico.  

As ordens que a secretária do ex-ministro recebia do seu chefe de que não estava para ninguém não eram motivadas apenas para resolução de problemas de matemática; Simonsen, barítono que era, recebia Paulo Fortes no seu escritório, e ai de quem os interrompesse no meio da cantoria. Verdi, que compusera um inusitado dueto entre baixos na ópera Don Carlos, com notas tão graves que chegam a ser abissais, não podia deixar os barítonos sem um grande dueto e, assim, na sua última ópera, Falstaff, criou um admirável. Conta Sérgio Fortes que o seu pai personificava o Falstaff, e o senhor Ford, marido que se julgava traído por uma das mais alegres comadres de Windsor, era o Mário Henrique Simonsen. Certa vez, segundo o filho de Falstaff, isto é, do Paulo Fortes, saíra um pacote de medidas econômicas do governo e os repórteres correram para o escritório do ex-ministro para colher a sua opinião. A porta estava trancada e a secretária, como um soldado montando guarda, não permitia que ninguém incomodasse o seu chefe. A hora de as redações dos jornais fecharem se aproximava e nada de o homem aparecer com as suas opiniões abalizadas. Mas para o alívio dos jornalistas e da pressionada secretária, Mário Henrique Simonsen se contentou com o dueto, não arrematando com a puxada ária do Senhor Ford, “É sonho ou realidade”, que se segue. E, assim, as portas se abriram, para entrar a imprensa, e sair a arte, personificada na pessoa do Paulo Fortes. Apesar da frase de W.H. Auden,  se eles permanecessem cantando seria mais sensato.

Muitas outras histórias saborosas como essas devem existir, mas o capítulo “Crônicas dos Bastidores” não é encorpado, e o Sérgio Fortes, num estilo meio João Ubaldo Ribeiro, confessou as suas implicâncias com os aparelhos de alta tecnologia, e, por isso, só nos enviou um e-mail. Infelizmente...







sexta-feira, 1 de novembro de 2024

3160 - Rádio memória

O BISCOITO MOLHADO


Volume 3701                    Data: 29 de novembro de 2013

 



A BANDA PASSA NO RÁDIO MEMÓRIA



-E o dia de hoje, Sérgio?

-Travestido de Homem-Calendário, ele foi em frente. Citou o nascimento de dois grandes compositores, Albinoni e Schumann, mas antes aludiu ao dia 8 de junho de 1887, quando foi patenteado um invento por Herman Hollerith, que tem tudo a ver com o salário dos nossos avós.

Ao citar o nascimento, em 1913,  do grande goleiro Roberto Gomes Pedrosa, descobrimos que o Homem-Calendário, não só é tricolor como mordaz comentarista dos feitos botafoguenses.

-Ele foi tricampeão pelo Botafogo em 1934. Jonas, o Botafogo ganhou tricampeonato?

-Caro Homem-Calendário, o Botafogo foi o único tricampeão do pré-profissionalismo no futebol carioca; lá vão os anos: 1932, 1933, 1934 e 1935.

Como o Jonas Vieira se acumpliciou a ele na gozação, Sérgio disse que recorreria ao Fernando Borer para dissipar essa dúvida. Caso o médico pesquisador do Rádio Memória seja botafoguense, escalará o escrete que vestiu a camisa da estrela solitária na época:

-Pedrosa, Octacílio e Nariz; Affonso, Martim e Canalli; Álvaro, Leônidas da Silva, Carvalho Leite, Russinho e Patesko.

E o Dieckmann ainda diz que o Botafogo é como o Elvis Presley: brilhou na década de 60 e, agora, está morto.

Do futebol para a religião, embora os mais orelhudos confundam as duas coisas. Em 8 de junho de 632, faleceu Maomé. Ao ouvir isso, levei as mãos à cabeça, temendo que os dois continuassem com o humor sarcástico e fizessem piadas, arriscando-se a serem ameaçados de mortes pelos aiatolás, como aconteceu com o escritor Salman Rushdie. Graças a Deus, ou a Alá, isso não aconteceu. Jonas Vieira afirmou, isso sim, que  o Corão tem passagens de grande riqueza poética e que Maomé, um comerciante, psicografou o livro, pois ele era um médium.

Deixou-nos a todos abismados  a informação que o dia 8 de junho  é o Dia Mundial da Saudade. Como, ora, a palavra saudade não é exclusiva da língua portuguesa?...

Quando chegaram as atrações musicais do programa, gravações de Orlando Silva e Jorge Goulart se impuseram, o que me surpreendeu. Há poucos dias, tendo como fonte o Sérgio Fortes, o Biscoito Molhado soube que participaria desse programa o maestro Antônio Henrique Seixas e toda a sua equipe foi mobilizada para cobrir esse evento. E até a “Pausa  para Meditação”, crônica do Fernando Milfond, nada.

O cronista se reportou às orações dos torcedores mais fervorosos aos santos nesta época de Copa do Mundo. Nesse mesmo domingo, aliás, João Ubaldo Ribeiro tratou do mesmo tema, escrevendo que Santo Antônio, sendo um santo português, evocado também pelos fanáticos torcedores brasileiros, ficou numa “batina justa”.

Hosana nas alturas, o maestro mais esperado do que Godot chegou!  

Ficou preso no trânsito ou em alguma passeata, deduzimos logo a razão da sua demora.

Sérgio Fortes fora incumbido, agora, de listar o currículo do convidado;  trombonista da Orquestra Sinfônica Brasileira, professor de trombone, maestro da Banda Filarmônica do Rio de Janeiro.

-Fundada em 2010.

O maestro foi mais preciso do que o Sérgio Fortes: maio de 2010. Reuniram-se músicos de alto nível, e surgiu a banda.

Instigado pelo titular do programa a anunciar a próxima atração musical, o maestro não decepcionou; seria o dobrado “Jubileu”, de Anacleto de Medeiros. Antes de ouvirmos o primeiro sopro dos instrumentos, ele verbalizou uma pequena introdução.  Tratava-se de uma composição, de 1896, que festejava os 50 anos da fundação do Corpo de Bombeiros; e assinalou que a banda do Corpo de Bombeiros regida por Anacleto de Medeiros gravou alguns dos primeiros  discos, no Brasil, na Casa Edison.

Ouvido o “Jubileu”, de Anacleto de Medeiros, filho de uma escrava liberta, Jonas Vieira escandiu bem as sílabas:

-Sen-sa-ci-o-nal. 

-Convidado meu. - disse o Sérgio com o orgulho de quem acertou no olho da mosca (metáfora de um amigo dele que tomamos emprestada).

-Eu, que gosto de bandas... - vibrava ainda o Jonas Vieira.

-O Antonio Henrique comentou que o Anacleto é o Phillip Sousa brasileiro. - revelou o Sérgio Fortes.

-Não deve nada a ele.- foi taxativo o Jonas Vieira.

Como Carlos Átila do Dieckmann, ou seja, porta-voz, Sérgio interveio :

-Dieckmann, que era para vir aqui e não veio (estava de ressaca, suspeitamos no Biscoito Molhado), pediu para falar com o maestro se era verdade que a maior ambição do John Phillip Sousa era compor valsas, mas que era péssimo, então lhe disseram: “isso aí dá uma boa marcha”, e ele resolveu a vida dele.

A versão do nosso amigo nórdico tornou o ambiente ainda mais descontraído. 

Jonas Vieira assinalou que John Philip Sousa era americano de pais portugueses, e fez alusão ao filme , de 1952, cujo título “Stars And Stripes Forever”, foi o seu maior sucesso.

O maestro falou, então, de discos seus de obras menos famosas do compositor americano, alguns deles musicais.

-Ele compôs até música para balé. 

-Para balé?!... - reagiu o Sérgio Fortes Abismado à informação do Jonas Vieira.

E veio a pergunta que não queria calar do titular do programa:

-E agora, maestro?

-Agora, um outro estilo, um maxixe, também chamado de tango brasileiro. 

E anunciou “Os Boêmios”, de Anacleto de Medeiros.  

Do primeiro ao último sopro da banda, todos se extasiaram, principalmente o Jonas Vieira que, no meio do encantamento, deu vazão a sua curiosidade:

-Você está envolvido com a banda desde o começo?

-Eu sou um dos fundadores.

-Quantos músicos?

-Sessenta.

-Maravilha! Isso no Brasil é um acontecimento. As orquestras no Brasil praticamente acabaram.

Com essas palavras do Jonas Vieira, fui conduzido à minha fase infanto-juvenil, quando, na companhia do meu pai, escutava a “Lira do Xotopó”, da Rádio Nacional. Alimentei, também a esperança de ouvir nesse programa a banda do meu colégio, Visconde de Cairu, que eu considerava o máximo.

-As bandas, os grupos de sopro, estão, hoje, restritas às formações militares; as da Marinha, Aeronáutica e Exército. As bandas civis estão em extinção.- constatou o maestro a triste realidade.

-Antigamente, as bandas estavam nas ruas.

Tinha razão o Jonas Vieira, até mesmo o Chico Buarque viu uma passar quando estava à toa na vida.

E foi lembrado o Élton Medeiros, também trombonista que, em Copacabana, ouvindo o Rádio Memória, ficaria melhor das mazelas que o incomodam.

-Já que falaram no Élton Medeiros, ele veio da banda. 

E prosseguiu o maestro:

-As bandas forneceram grandes talentos: Altamiro Carrilho, Paulo Moura, Severino Araújo.

E a próxima gravação foi da autoria do Severino Araújo, “Um Chorinho Delicioso”, o solo, fez questão de realçar o convidado do programa, era do clarinetista Cristiano Costa, “um dos fundadores da banda”.

-Arranjo primoroso! - concordaram todos com o Jonas Vieira após a audição.

A descontração voltou a reinar quando aludiram ao tamanho gigantesco do convidado. Coube a nós, ouvintes de rádio, imaginarmos um Gulliver em Liliput à frente de uma banda. 

Encerrado o recreio, voltamos às aulas de música:

-A agora, maestro?

-Vamos seguir agora com Hermeto Pascoal e uma das suas músicas mais famosas “Bebê”.

E que bebê, de deixar os pais orgulhosos!

O tempo urgia, e o titular do programa pediu mais banda.

-Agora, “Mas que nada”, do Jorge Ben, e o arranjo é de um japonês, Naoshiro Iwai. Vocês vão ver que ele faz uma releitura sem tirar as características da música.

E vieram, depois de soada a última nota, mais elogios à banda quwe nunca foram demais.

Antes do “demorado abraço” da dupla de apresentadores, o maestro comunicou o site da  Banda Filarmônica do Rio de Janeiro: www.bfrj.com.br.